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Entre Kill Bill e o direito de morrer

Paulo Sérgio Leite Fernandes 

         Keith Carradine, aquele que fez, na mocidade, série longa de filmes sobre Kung-Fu, escondeu-se dentro de um armário a três dias do término de um filme qualquer, dois anos atrás, enforcando-se lá dentro. Não se sabe bem qual a razão. Às vezes não há qualquer motivo, mas o sujeito resolve ir embora, desafiando dúvida atroz. Isso acontece a gente importante e a mendigos variados. Quanto aos últimos, não há quem ligue. É um defunto a mais entregue a cemitério público. Já os diferenciados provocam noticiário imediato. Getúlio Vargas, pressionado por fatores variadíssimos e principalmente pela irresponsabilidade de seu anjo negro (Gregório Fortunato), que o protegia, deu um tiro no peito. Fale-se, sem maiores preocupações quanto à sintonia no tempo,em Jean Paul Sartre, Hemingway e Sócrates, um deles lá atrás, ingerindo cicuta. Hemingway praticou o autocídio usando um fuzil de caça. Poderia tê-lo feito na África, enquanto caçando feras bravias, mas preferiu morte doméstica. Quando Getúlio Vargas se suicidou o cronista, soldado metido à força no serviço militar, estava no meio de um juramento à bandeira. A notícia caiu como raio na soldadesca. Deve ter sido um dos pouquíssimos episódios em que não houve os protestos de respeito, admiração e obediência àquele pedaço colorido de seda cujo desenho é atribuído à maçonaria. Dentro do contexto, o cronista só se recorda de ter entrado em prontidão imediata, ele e um velho trabuco Mauzer 1908 que, se disparado alguma vez, não o fora nas mãos do portador.

         Jean Paul Sartre foi lido várias vezes, com muito medo, aliás. Vale dizer que há muitos anos um eminentíssimo penalista de São Paulo deu ao cronista, de presente, uma carabina Winchester novinha, no estojo, deixada pelo pai, falecido havia pouco tempo. O escriba passou a arma à frente com rapidez, porque arma de fogo tem pacto com o demônio.

         O prólogo vem a pelo após notícia de que Tony Nicklinson, inglês tetraplégico que perdeu todos os movimentos abaixo do pescoço, pediu à Justiça o direito de morrer, não obtendo autorização a tanto. A decisão do judiciário britânico foi saudada por entidades médicas e outras contrárias inclusive, ao abortamento. Afirmava o suicida em potencial que não tinha dinheiro para viajar à Suíça, internando-se num hospital preparado para tal fim. Era muito caro e, na verdade, a morte viria mecanicamente, em país estranho e em local industrializado. Indagar-se-á se a introdução de Keith Carradine tem uma só razão. Não, tem outra, constante aliás de cena de um dos dois filmes em que personifica Bill Kid: a heroína, ali, depois de dopada, é enterrada viva. Acorda, acende uma lanterna providencial e destrói o tampo, usando as mãos nuas.

         Há uma ligação sofisticada entre os personagens. Em primeiro lugar, deve ser terrível ser um morto-vivo. Em segundo plano, não se pode admitir morte pela metade. O cronista, na vida profissional, experimentou dois ou três casos de gente politraumatizada. Um dos acidentados ficou anos num leito de hospital. Absolutamente imóvel, simplesmente dormia. O pai jurava que se comunicava com o filho. Não vale a pena trazer exemplos outros. Vai daí, Tony está acordado e quer dormir de uma vez*. Pede autorização para morrer mas, segundo os constitucionalistas libertários, o direito à vida é irredutível. Não há, entretanto, quem coloque em qualquer texto o direito de morrer. Diga-se que o ser humano é dono do próprio corpo. A questão, no fim das contas, não se prende a permissão para morrer, mas sim, autorização para matar. É aí que, em ofensa direta a argumentos postos na dogmática jurídica, “a porca torce o rabo”. O britânico quer inocentar o apressador de sua morte. O assunto parece original mas, nas velhas “Minas Gerais” e nos sertões do Agreste, havia as tias carpideiras. A certa altura, a família compungida deixava o leito do moribundo. A velhinha desdentada entrava. Ao sair, o serviço estava feito. O cronista não há de procurar, falando nisso, o nome de um travesseirinho que uma ordem sacerdotal qualquer usava para sufocar o doente que demorava para morrer, mesmo estando nas últimas. O argumento é bom: o quase defunto recebera a extrema unção e não devia, depois dessa, ter maus pensamentos.

         O Brasil tem legislação proibitiva de atividades iguais ou parecidas. Comenta-se por aí que as famílias dos doentes, pretendendo interromper sofrimentos bilaterais, autorizam o desligamento dos aparelhos. Sofistica-se a opção afirmando-se que é diferente de matar. Apenas se deixa morrer. No fim é a mesma coisa. Mata-se por omissão…

         Vale, ao fim, a recordação de filme (francês, quem sabe?). Cuidava-se de um sujeito bacana acometido por doença grave. Os filhos prepararam uma bela festa da qual ele participou. Alguém devia favores a um deles. Meteram no velho, então, à sobremesa, maciça dose de morfina. Ele partiu numa boa, sorrindo, ao som de “Smile”, composta pelo próprio Charlie Chaplin. A música é bonita. Fica bem.

* Mal publicada a crônica, Tony morreu (21/08/2012).

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