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A sedação

Roberto Delmanto

O comerciante era meu vizinho de apartamento, parecendo ser uma pessoa corretíssima. Sua filha era amiga da minha.

Vivíamos na época da ditadura militar quando li, na seção policial de um jornal, notícia envolvendo seu nome.

Fôra visto dando voltas com seu carro em um quarteirão onde havia uma agência bancária, suspeitando-se de que pudesse ser um revolucionário de esquerda, assaltante de banco. Foi chamada a polícia, que encontrou no porta-malas do veículo grande quantidade de cigarros estrangeiros, então de importação proibida.

Preso em flagrante por contrabando, conseguiu responder ao processo em liberdade.

Nunca comentou o caso comigo, até que, passados cerca de três anos, sua mulher, desesperada, me procurou. O marido havia sido condenado a um ano de reclusão, sendo que naquele tempo não havia “sursis” para esse tipo de pena, nem se podia apelar em liberdade.

Estava foragido e um antigo problema coronário dele se agravara, com a tensão provocada pelos acontecimentos.

Era mês de agosto e com o cumprimento de um terço da pena, poderia ser beneficiado pelo tradicional indulto de Natal.

O Juiz Federal que o condenara era muito humano e tínhamos um relacionamento muito bom. Expliquei-lhe a situação e ele me disse que, se o problema de saúde fosse comprovado, autorizaria o cumprimento da sentença em um hospital.

Internei o cliente em uma clínica cardiológica e comuniquei o fato ao Magistrado, juntando um atestado médico e os exames correspondentes. O Juiz, entretanto, antes de apreciar o pedido, determinou que um oficial de justiça fosse à clínica verificar, in loco, o real estado do paciente.

Avisei o médico que o atendia da iminente visita do oficial de justiça. Este, ao chegar lá, encontrou o cliente inconsciente, com máscara de oxigênio e monitorado por aparelhos.

Voltando ao Fórum Federal, o oficial de justiça, muito impressionado, contou o que vira ao Magistrado, acrescentando: “Doutor, acho que o homem está morrendo”…

Posteriormente, fiquei sabendo pelo médico que, embora a doença fosse real, ele, por cautela, sabedor da vinda do oficial de justiça, mandara sedar o paciente…

O pedido de hospitalização foi, então, deferido. Um mês depois, com sua melhora, o Juiz autorizou a sua transferência para uma chácara de repouso.

Preparei com antecedência a documentação necessária e, no final de dezembro, cumpridos quatro meses, consegui que o antigo vizinho fosse o primeiro paulista a receber o indulto natalino naquele ano.

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