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Considerações poéticas sobre o homicídio piedoso

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
Considerações poéticas sobre o homicídio piedoso***

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Os antigos polinésios tinham costumes honradamente extravagantes: vivendo da pesca e pela pesca, tinham no mar o maior depositário de suas atividades e crenças. Não sabiam ler nem escrever, é claro, mas preservavam a cultura através de canções. Ensinavam navegação às crianças usando as estrelas e levando os navegantes-mirins a aprender a decorar, em melodias, o direcionamento correto. Deve ter sido muito lindo domar as ondas naquelas pirogas feitas de troncos de árvores queimados por dentro e ostentando, quem sabe, belas velas trançadas em tiras de bambu. Outro aspecto muito importante: chegada a hora em que o líder da tribo, o ancião enfim, não mais sentia forças para conduzir os destinos da aldeia, havia uma espécie de “Cerimônia do Adeus” (é lembrar de Simone Beauvoir), o velho levava a canoa à praia, empunhava seu remo preferido, marchetado com pedaços de marfim e osso de animais marinhos, colocava meia dúzia de cocos e um cacho de bananas na proa e se punha na água, preferentemente numa bela manhã em que o sol começava a se banhar no horizonte. A aldeia toda seguia junto, levando inclusive vestuário extra e alimento. Havia naquilo tudo uma projeção mística. Os remos eram a posse mais preciosa. Significavam, no fim das contas, a possibilidade de sobrevivência. Acontece que o ancião não voltava. Dois, três ou quatro dias após, o remo voltava sozinho, carregado pela maré alta. Aquele que primeiro conseguisse colocar as mãos no artefato, nadando às vezas muitos e muitos metros adiante da rebentação, seria o novo chefe da comunidade.

Não sei onde leio essas histórias. Invento algumas. Quem sabe, esta seria uma delas, mas tanto faz. Não há o que o pensamento pense que outro não haja pensado antes. Portanto, vamos lá!

O início diz respeito à chamada ortotanásia, ou morte certa, ou ainda morte piedoso, também dita eutanásia. O Conselho Federal de Medicina, anos atrás, baixou resolução admitindo, em condições últimas, uma conduta passiva no sentido de permitir que os moribundos passem para o outro lado, se outro lado houver. De minha parte, o lado de lá é representado por Pedro, a quem chamo de “Peter”. O “Maioral”, aquele de quem tive o primeiro retrato na primeira comunhão, é Deus, um gajo muito sério, severo e barbudo a me olhar com expressão enigmática. Há “Nossa Senhora”, a mãe de todos, nunca ausente em minhas fabulações, mesmo porque sempre me dei bem com as mulheres, sem exceção da minha própria. Assim, falo da Santa com máximo respeito e crente na intermediação, porque pecadilhos todo mundo tem, sendo preciso administrá-los.

Não se pense que estou a fugir do assunto. É preciso, certamente, morrer sem dor. Certa vez fui a uma missa de 7° dia. Fico prestando atenção nos fiéis. Não gosto de olhar defunto. À minha frente havia duas velhinhas, beirando os noventa anos. Eram simpáticas, estavam atentas e cochichavam. A certa altura disse uma à outra: “- Esse padre é muito chato. Se eu morrer, vou fazer tudo diferente.” Já se vê que a antiga senhora tinha a errônea ideia da perpetuação, pois trazia a morte como uma hipótese, nunca uma certeza.

As questões ligadas à ortotanásia são verdadeiramente complicadas. Não há quem seja ingênua a ponto de afirmar que, inexistindo autorização legal, não se pratique a morte piedosa no Brasil. Na verdade, velho médico muito meu amigo, espécie de “O Físico” de Noah Gordon, me disse que é difícil morrer. Ressalvadas as paradas cardíacas e coisas assim, encontrar-se com Caronte dá trabalho. Ao próprio e circunstantes. Vai daí, há muito tempo se pratica a ortotanásia no país, em discrição, é claro, sabendo-se que os familiares, autorizando a morte piedosa, livram o quase fantasma de um peso muito sério e levam paz aos interessados, sofredores também em grande proporção.

Num sentido bem romântico, melhor seria o comportamento dos primitivos polinésios. Iam por vontade própria, carregavam seu único tesouro e o devolviam a quem mais se qualificasse a tanto. No fim das contas, vale talvez a lição do cantante popular Dorival Caymme, de quem tenho um guardanapo de linho autografado em letras bem grandes. À beira daquele utensílio, resta ainda pequena mancha de batom. “É doce morrer do mar, nas ondas verdes do mar meu bem, ele se foi afogar. Fez sua rede de noivo no colo de Iemanjá”.

No fim de tudo, os primitivos sabiam das coisas. Guerreiros ou navegadores têm o direito de se conduzir pelos próprios meios. Assim deve funcionar. Evidentemente, o Código Penal brasileiro não serve a tais considerações. O jurista e o romance não se acertam, ou por serem os primeiros pudicos em demasia, ou por se acovardarem dentro do pano escuro das becas e togas. Perdem-se na linha do horizonte.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e dois anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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