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Recordações do Carandiru ou “Melhor em Catanduvas”

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
Recordações do Carandiru***

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Poucos se lembram da tragédia do Carandiru, complexo penitenciário que abrigava, nos idos de 1992, milhares de presos do sexo masculino. Um belo dia, houve uma revolta. A Polícia Militar, convocada às pressas, dialogou bastante mas a situação levou à perda de controle. O resultado, caótico, se consubstanciou na morte de 111 detentos.

A operação foi comandada por um coronel de nome Ubiratan, levado a júri anos depois, o único condenado a não se sabe quantos anos de reclusão mas, em seguida, em decisão inédita, absolvido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. O relator foi o desembargador Walter Guilherme. Aliás, a decisão absolutória provinda do Tribunal de Justiça é, sim, inédita, pois as decisões do júri são soberanas, podendo ser anuladas, sim, mas não modificadas quanto ao mérito. Aconteceu. O oficial referido teve destino trágico mais tarde, porque os fados o colheram. Mataram-no a tiro dentro da própria residência, discutindo-se hoje a autoria do disparo. Não se meta a colher nas causas e características de tal homicídio, dizendo-se alhures que foi provocado por questões amorosas.

O local daquela penitenciária se transformou, agora, no denominado “Parque da Juventude”. A demolição se deu por obra do governador Geraldo Alckmin, embora José Carlos Dias, enquanto secretário de justiça, tivesse tentado chegar a tal resultado.

A invasão do Carandiru foi precedida, evidentemente, de entreatos paralelos, uns creditados aos presidiários, outros exercidos pela própria Polícia Militar. Aquilo virou um inferno de Dante, corredores escuros e alagados, fantasmas pulando e gritando aqui e ali, tiroteio múltiplo e, sobretudo, o medo desequilibrando uns e outros, embora não devendo acontecer a policiais. São treinados para não matar, a não ser que imprescindível.

Houve tempo, muitos anos atrás, em que o cronista tinha mais familiaridade com prisões. Há quem comece a advocacia criminal numa temperatura mais oxigenada, querendo isso dizer que encontra, quando rapazola, terreno propício a menor dificuldade para ganhar a vida. Não foi o caso do cronista. Já começou a advocacia sentindo o cheiro adocicado da batata cozida esfumaçando dos panelões fervendo em cozinhas maltratadas. É mais ou menos como o médico que aprendeu a arte no pronto-socorro de hospital público. O ser humano vive permanentemente ligado aos chamados feromônios. Em síntese, nasce, cresce, vive e morre exalando e sentindo odores. O cheiro de cadeia é absolutamente peculiar. A gente não se livra nunca dele. É mais ou menos como “O Egípcio”, criatura escondida numa casa de embalsamamento. Fica-se mais ou menos assemelhado a “Lady Macbeth”: a mulher, endoidecida, lavava as mãos dezenas de vezes, procurando livrá-las do sangue do marido assassinado. Em síntese, aquilo cheira mal, ressalvadas, quem sabe, as construções de RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), implantadas por Márcio Thomaz Bastos enquanto ministro da justiça. Catanduvas, por exemplo, deve ter a qualidade da assepsia. Destrói-se a alma, preservando-se o corpo do condenado. De repente é bom…

O escriba conversou, muitos anos atrás, com um dos encardidos soldados intervenientes na operação Carandiru. Ele tinha pavor da escuridão, não só em razão do possível contato físico com detentos, mas por receio de morféticas atividades dos encarcerados. Por exemplo, o “aviãozinho”. Para quem não sabe, um canudo de refrigerante, um cone de papel bem delicado e um alfinete na ponta. Uma zarabatana-mirim. Um sopro só. Na ponta do alfinete, uma gota de sangue contaminado por HIV ou, quem sabe, apenas um pouco de tinta vermelha. “Fuusshhh”… Na mão, no rosto, na orelha ou no que restar fora da blindagem. Lá se ia o PM pai de família pois, naquele tempo, Cazuza e muitos outros se foram em razão do vírus maldito. Eis aí. Cento e onze seres humanos morreram nas mãos da Polícia Militar, uns inocentes, outros não. O coronel, no lado da lei, escapou. Dizem que estaria desacordado no meio da refrega, pois ferido por um televisor atirado contra seu corpo. Fleury era governador à época. Não deixou boa lembrança, não por isso somente, mas por outras coisas também. Segundo relato seu, estava dentro de um helicóptero e não sabia das coisas. Poderia ter dito, como Geraldo Alckmin: “Quem não reagiu sobreviveu”. Não disse. E la nave va.

* Advogado criminalista em São Paulo há mais de cinquenta e dois anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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