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O grito do advogado

Roberto Delmanto

O Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94) prevê, em seu art. 7º, inc. X, ser direito do advogado “usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou informações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas”.

Mas nem sempre foi assim. Antigamente, mesmo que atingido em sua dignidade profissional ou diante de manifesto equívoco dos julgadores sobre questão de fato, o advogado, após a sustentação oral, não mais podia se manifestar durante o julgamento em Segunda e Superiores Instâncias. Quem causou a mudança da anterior situação para a atual foi José Adriano Marrey Júnior, um dos maiores criminalistas  brasileiros da primeira metade do século passado.

Certa vez, após ter feito uma de suas magníficas sustentações orais perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, Marrey Júnior ouvia atento o voto do Relator. Este dizia que determinado documento, vital para a defesa de seu constituinte, não constava dos autos. Marrey Júnior, que não mais podia pedir a palavra, não se conteve e gritou: “Folha tal!”. Estupefatos com a atitude do renomado causídico, exemplo de ética e dignidade profissional, os Desembargadores a princípio não entenderam o significado de sua atitude.

Quando Marrey Júnior tornou a gritar: “Folha tal”, o Relator resolveu abrir os autos na folha indicada, nela encontrando a prova documental que julgava inexistente. Mudou, então, o voto escrito que estava lendo e manifestou-se pela absolvição do acusado, no que foi seguido por seus pares.

A presença de espírito e ousadia de Marrey Júnior tiveram enorme repercussão, contribuindo para que o Estatuto da Advocacia passasse a prever a possibilidade de intervenção do advogado após a sustentação oral. A esse notável tribuno deve-se também a transformação da oratória forense, outrora pomposa e rebuscada, cheia de preciosismos, na oratória da argumentação, moderna, baseada na prova dos autos.

O busto de Marrey Júnior – com a inscrição “O Advogado”, que em sua singeleza tudo diz – guarnece hoje o imponente Salão dos Passos Perdidos, na entrada principal do Tribunal de Justiça de São Paulo. Junto dele, os bustos de outras grandes figuras: o criminalista Antonio Augusto de Covelo e o promotor César Salgado, da sua geração; os advogados criminais Dante Delmanto – meu pai, que foi discípulo de Marrey Júnior e com ele trabalhou nos primeiros anos de advocacia –, Américo Marco Antonio, Euvaldo Chaib, Antonio Augusto de Almeida Toledo e o promotor Nilton Silva, da geração seguinte. Pairando sobre todos, o enorme busto de Rui Barbosa, o maior dos advogados brasileiros. No belíssimo plenário do antigo Tribunal do Júri, ao fundo do salão, o busto do promotor Ibrahim Nobre, também da geração de Marrey Júnior.

 Lado a lado, esses memoráveis defensores e acusadores do passado, em silencioso debate, velam hoje pelo respeito aos direitos e garantias individuais, frequentemente ameaçados, e o aperfeiçoamento da Justiça.

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