Home » Ponto Final » Ainda a tragédia de Santa Maria (ou “O beijo da morte”)

Ainda a tragédia de Santa Maria (ou “O beijo da morte”)

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
Ainda a tragédia de Santa Maria (ou “O beijo da morte”) ***

____________________________________________________________________________

A tragédia correspondente ao incêndio da boate Kissem Santa Maria, Rio Grande do Sul, produz consequências diretas e outras remotas. Em primeiro plano, há dezenas de mortos e feridos, gerando-se muita dor e comoção internacional. Em segundo lugar, surge a necessidade de providências urgentes no sentido de aprimoramento da segurança de estabelecimentos iguais ou semelhantes àquele tomado pelas chamas. Por último, emerge a imprescindibilidade de apuração, pois não se trata de fenômeno natural mas, em termos jurídicos, há relação causal com início provocado por ação humana positiva ou negativa. A omissão, no fim das contas, é, também, um tipo de conduta. Vai daí, procuram-se os culpados, sejam eles os proprietários do estabelecimento visado, os autores da pirotecnia primeira, ou quem sabe, um eletricista qualquer menos atento à segurança da instalação de circuitos adequados ao funcionamento da boate. Em princípio, a tipificação corresponderia a uma das formas de crime culposo (imprudência, negligência ou imperícia). Entretanto, o resultado abrangendo muitas e muitas mortes e graves ferimentos obriga a uma atividade intelectual sofisticada da acusação pública, porque é preciso, independentemente da apuração da realidade, severidade maior na perseguição inicial. Deixa-se de lado, então, a característica correspondente aos delitos culposos em geral, partindo-se para o dolo eventual. Em outros termos, os agentes ou omitentes teriam assumido o risco de produzir o resultado enquanto deixavam de prover no sentido de garantir a segurança dos frequentadores. Decreta-se a prisão dos sócios do estabelecimento, sobrando o aprisionamento de criatura que teria produzido a primeira fagulha enquanto iluminava a apresentação com uma pistola de sinalização. O dolo eventual tem sido convocado a incriminar acontecimentos iguais ou parecidos, bastando referir os chamados “rachas” em vias públicas, abalroamento de navios ou até mesmo resultados danosos em acidentes com aeronaves. Frente à insuficiência, no Código Penal, de tipos criminais adaptáveis a tais fenômenos trágicos, é o que se pode fazer, martelando-se a tarefa com muito esforço nos fatosem apuração. Evidentemente, a tragédia há de gerar projetos de lei sintonizáveis com os dramas em ebulição, estimulando-se igualmente atividades repressivas nas centenas de casas noturnas funcionando, aqui e ali, nas sombrias esquinas das metrópoles e cidades menores, correspondendo, tais instituições, a tresloucados ajuntamentos onde o surdo eco do instrumental eletrônico se confunde com álcool, drogas e pitadas de desespero. Cuidem-se, portanto, os donos desses cabarés mordiscantes da moral tradicional. Melhor seria que se transformassem em templos religiosos, marcando-se a penitência para uma quarta-feira de cinzas. Aliás parece que já existe por aí um hermafroditismo parecido. Infelizmente, tal mistura não é rotina. O crime, a sandice, o tremeluzir das luzes eletrônicas, acrescidos à insegurança dos notívagos, transforma parte da juventude em espécie de zumbis, fingindo-se alegria enquanto pés e mãos se movimentam em direção ao vazio deixado no entreato daqueles bailados desconexos. No meio disso tudo, o incêndio é apenas episódico, porque antes do crepitar das chamas o desatino já se instalou na consciência dos dançarinos de ocasião.

* Advogado criminalista em São Paulo há mais de cinquenta e dois anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

Deixe um comentário, se quiser.

E