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Brasil, país de alcaguetas

Paulo Sérgio Leite Fernandes 

A dedoduragem no Brasil está chegando à insuportabilidade. O país virou reduto de velhas tias solteironas acotoveladas nos muros e fofocando sobre os incidentes do quarteirão. Parte do fenômeno repulsivo advém do estímulo votado pelo próprio Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia, enquanto fiados os três na mudança legislativa inspirada imitativamente no processo penal saxônico, com relevo para os Estados Unidos da América do Norte. A investigação criminal, pretendida pelos promotores de justiça afincadamente, incorpora hoje todo o instrumental eletrônico produzido para a intromissão nos segredos alheios, tudo numa compulsão fétida. A chamada “transparência” mostra seu lado ruim, porque os mistérios da privacidade são esgarçados, transformando-se todos em pecadores portando maior ou menor dose de defeitos, mas sempre deficiências. Ministros da Suprema Corte, juízes qualificados e acusadores colocados nos mais importantes bastiões da República têm hipotéticos predicamentos negativos expostos à luz do dia. Vetustos órgãos de imprensa, antes pudicamente recostados atrás de dosséis entreabertos, afastam as cortinas e se movimentam, autênticos paparazzi, buscando escândalos alimentadores da sempre crepitante fornalha da indiscrição. O povo gosta. No fim, todos gostam, porque vale, nessa tenebrosa atividade, o refrão criado ou repetido pelo poeta popular: “– Procurando bem, todo mundo tem pereba. Só a bailarina é que não tem”. Pode-se dizer, no fim das contas, cuidar-se de fenômeno em que os próprios defensores da divulgação das feridas de cada qual são atingidos pelo veneno destilado, uma espécie de operação bumerangue, aquela arma afilada que os aborígenes atiravam ao vento e recolhiam nas mãos, havendo casos de pontaria desastrada, porque o utensílio lhes abria o crânio depois. Dentro do contexto, o Ministro-Presidente da Suprema Corte fere a família forense toda, porque generaliza os doestos. Fisgam-no em sequência pois, se desenroupou um ou outro, acharam-lhe ponto fraco na toga.

O assunto, quando o cronista começou a advogar, isto há cinquenta e poucos anos, seria impermeável a discussões. Magistrados eram magistrados, padres eram padres, médicos eram médicos e, nessas condições, mantinham dose de respeitabilidade a protegê-los das infâmias. De vez em quando, muito raramente aliás, uma criatura se desatinava. Os seres humanos são bichos e, como tais, se sujeitam a desastres biopsíquicos. Entretanto, quando um sacerdote se dispunha a dar a bênção, o penitente a recebia com extrema dose de respeito, egressa da mística relação de causalidade entre a conduta e o perdão dos próprios pecados. Agora, numa espécie de falta de vergonha coletiva, a imprensa se transforma em uma alcateia de medusas enlouquecidas, os magistrados tiram as togas e vão à batalha campal, os médicos recebem no peito a flor-de-lis da transformação em arautos do mau comportamento profissional, os advogados têm seu sacrário invadido e destruído pela Polícia e os delinquentes são acarinhados no colo dos perseguidores, permutando afeto pela confissão das ilicitudes e apontamento dos comparsas. Bandidos denunciados em 20 ou 30 ações penais confraternizam com beleguins de baixa, média e alta estirpe, misturando a seiva mordente gerada por sua imoralidade na água pura posta na mesa dos pretores. Que coisa horrível. Que época pustulenta. Que névoa escurecida cega os olhos daqueles que, obrigados a medir a tonalidade ética da nação, contribuem para o negrume pleno, perdendo então a capacidade de retorno a padrões mínimos imprescindíveis à manutenção do respeito à hierarquia. No fim de tudo, a derruição das barreiras tradicionalmente antepostas ao vitupério da personalidade está cobrando um caríssimo preço àquelas mesmas criaturas responsáveis pelo abastardamento da intimidade do cidadão, da discrição a ser mantida no recinto dos lares brasileiros, da intangibilidade constitucional do domicílio, da proteção contra a injúria, a difamação e a calúnia. Vale o provérbio posto em antigo código reitor de parte grande da humanidade: “– Olho por olho, dente por dente”. Há um outro, vicejando nos albores do mundo consciente e repetido diariamente em qualquer boteco de esquina: “– Quem com ferro fere, com ferro será ferido”. La nave va.

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