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O Coronel e o Lobisomem – A propósito do Coronel Brilhante Ustra

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Alguém, por curiosidade e melhor dose de intenções, foi ao arquivo da Polícia Política paulista ao tempo da ditadura posto à disposição da brasilidade pelo Governador Geraldo Alckmin. Consta tratar-se de pequena parcela da documentação existente (apenas 10%), sabendo-se, se a memória não falha, que Romeu Tuma, lá atrás, havia colhido boa porção do repositório e levado para a Polícia Federal, quando assumiu a direção daquele órgão. De qualquer forma, o documentário está à luz do dia, bastando que os interessados digitem o nome do pesquisado. São duas as alternativas: ou a criatura aparece, com seus pontos hoje positivos e à época negativos, ou está ausente. Curiosamente, o que antes era demeritório é, agora, uma demonstração de bons antecedentes. Tocante ao escriba, o interveniente curioso, pretendendo redescobrir o passado, digitou “Paulo Sérgio Leite Fernandes” e trouxe o achado. Fiquei orgulhoso com os registros referentes à minha atuação enquanto, nos idos de 1973, defendi alguns subversivos, fugindo romanticamente com um bispo escondido sob cobertores no banco traseiro de um Ford Landau (o religioso era pequeno) e, entre outras peraltices, ocultando jovem estudante comunista num mosteiro (sempre um mosteiro, desde os tempos da cavalaria andante). Chego ao presente, portanto, com um bom curriculum vitae, embora me desgraçasse se o Brasil continuasse sob a ditadura iniciada em 1964. Tenho, portanto, moral para comentar o que passou, podendo competir, aliás, com muita gente boa e desmentir quem estiver a dizer que é sem nunca ter sido. Cuidado comigo, pois!

O comentário vem a propósito da última reunião da Comissão da Verdade nacional. De um lado, o Coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, já velho (torturadores também envelhecem e morrem). Do outro lado, entre outros, o Ex-Procurador-Geral da República Cláudio Fontelles e José Carlos Dias, meu coleguinha quando tentávamos visitar presos na rua Tutoia, em São Paulo, eu com uma passagem de ônibus para São Vicente, pois, se fugisse, não conseguiria chegar mais longe. Mas era assim. Vi, na cena mostrada em todos os canais de televisão, faz uma semana, o militar reformado Ustra batendo forte a mão da mesa e afirmando que aquilo, no autoritarismo brasileiro, era uma guerra. Não havia anjinhos entre os comunistas. Além disso, ninguém morrera dentro do DOI-CODI. Aquilo era briga de rua, sobrando para os dois lados. No meio da discussão, Cláudio Fontelles, o mesmo que enquanto Procurador-Geral aposentou o “Guardião”, perdeu a calma e gritou com o outro. Houve intervenção de um torturado, na plateia. O Coronel tinha protetores ou simpatizantes a aplaudi-lo.

O passado não perdoa. A verdade vai surgindo, às vezes devagar, mas os méritos e deméritos da criatura exsurgem, sendo expostos à coletividade. Dentro de tal contexto, a fisionomia do militar enraivecido aparece dura, muito dura, cada ruga no lugar certo a relembrar, no meio da calva, os gritos de dor daqueles que, certamente, passaram pelas suas mãos. Que coisa horrível deve ser a lembrança dos estertores de uma criatura seviciada, com ou sem sangue vertendo mas, seguramente, submetida àquelas manobras conhecidas por qualquer bate-pau de calabouço apodrecido. Evidentemente, o Coronel não se enrubesce com a rememoração, mas admite que prendeu e entrou em conflito com os subversivos. A lei de anistia lhe preserva a liberdade, sobrando-lhe ações cíveis em tramitação. Para azar seu, se guerra houve, a ditadura a perdeu, sobrando um Brasil caminhante ainda rumo à plenitude da redemocratização, na medida em que ainda sobraram muitas formas de autoritarismo, transformando-se os beleguins em espiolhadores das intimidades dos brasileiros. Ustra está vivo. Outros já morreram. É lembrar Erasmo Dias, a prestar contas ao deus dos torturadores (há divindade para todo gosto). Entre as nuvens escondidos, restam os lobisomens cobiçosos das almas enegrecidas pelo mau uso. Dizem que o além é atemporal. Cada qual, com seus anjos ou demônios, há de pagar, aqui ou lá fora, o preço das maldades que fez. Tocante ao Coronel Ustra, a coisa ruim lhe está na cara. Hão de carregá-lo, se fez o que fez – e o fez – nas asas de um negro e caquético urubu, grasnando, renitente, rumo à eternidade. Eis aí.

Trecho do depoimento do Coronel Brilhante Ustra:

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