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Recordações da ditadura brasileira

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Uma das vantagens da sobrevivência é poder testemunhar sobre o que já foi. Certa vez, num debate público, um opositor muito agressivo decidiu contestar o velho criminalista. Recebeu resposta: “– Moço, cale a boca. Quando isso aconteceu, sua mãe não menstruava”. A observação chagava ríspida, mas necessária. Serve de parâmetro a relembrar que quando Erasmo Dias, durante a ditadura, invadiu a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o cronista conseguiu entrar, no meio da cavalaria e bombas de gás lacrimogêneo. Pessoa da família cumpria obrigações estudantis. É bem nítida ainda, na memória, a imagem dos capacetes surrealistas usados pelos integrantes da Polícia Militar do Estado de São Paulo, cavalos relinchando e batendo os tacões no chão ladrilhado, uns e outros pedaços do piso contendo inscrições e nomes de gente que havia lutado e morrido pela liberdade da pátria. Ficou a lembrança de que Polícia Militar não tem cara, quando mimetizada dentro daquela roupa assemelhada a criaturas espaciais. O soldado faz o que quer, porque perdeu a individualidade. É apenas um pedaço do todo, um recorte de quebra-cabeça perdido no passado. As peças principais do mosaico referido persistem, entretanto, desde quando se inalava, dentro da vetusta Faculdade de Direito, o mesmo gás usado pela mesma Polícia Militar para o desfazimento das manifestações que infelicitaram – a expressão é esta – as últimas noites paulistas. Quem viveu viu. Quem sobreviveu não perde o cheiro daquela satânica nuvem de fumaça venenosa. É curioso, mas nunca se viu a PM clássica ao lado da cidadania. Salva o corpo de bombeiros. É, e sempre foi, aquele corpo auxiliar das Forças Armadas, o vergastamento do chicote do pretor mandado por César contra o populacho. Nos idos de 1973, 1975, 1977, enfim, havia nas universidades a cadeira de “instrução moral e cívica”, normalmente ministrada por egressos do Exército Nacional. Daqueles idos à atualidade, curiosamente mas com dose extrema de um quase sadismo, a pregação oficial é a de liberdade e transparência, embora a conduta do mandonista parta para o extremo oposto, numa fagocitose, na medida em que o preposto do rei deveria proteger a burguesia de baixa, média e alta estirpes, chicoteando entretanto estudantes no meio da praça. O Governador do Estado finge que não aconteceu nada. Estavam em Paris, ele e o Prefeito de São Paulo, sob as sombras da Torre Eiffel. De vez em quando, entretanto, o senhor feudal afirma o império da lei. O mais moço, o preboste, está preocupado, pois foi eleito pelo PT. Tergiversa. Disse que talvez tenha havido excesso policial. E fica nisso.

No fim de tudo, a situação é angustiante, porque a Polícia Militar do Estado de São Paulo não perde o caráter repressivo. Tenta, às vezes, mostrar um serviço social qualquer, prontificando-se até mesmo a auxiliar parturiente que dava à luz sobre uma calçada, mas o grosso é representado pelo fato de que a PM, ao tempo da ditadura, servia como marionete, acolitando, quarenta anos depois, comportamentos extravagantes enquanto, por exemplo, coopera, em Presidente Prudente, na montagem e funcionamento de centro clandestino de interceptações ambientais e/ou telefônicas empreendido pelo Ministério Público.

Dentro de tal contexto, o papel daqueles policiais despersonalizados, pois protegidos por roupas uniformizantes, é sempre assemelhado. Não mudou, de 1964 ao tempo presente, e mesmo antes daquilo. Viu-se em São Paulo, nos últimos dias, confronto enrijecido entre universitários, uns e outros adolescentes de curso colegial, bandalhos diversos, alguns batedores de carteira, uns fumadores de maconha (hoje brinquedo de criança), adeptos de marcas melhores ou piores de cerveja e cachaceiros mas, no fundo, presidindo a tudo, a plebe estava lá. E povo é também isso, com um enorme sentimento de insatisfação provocada por fatores cuja profundidade, dimensão e pressupostos devem ser interpretados pelos cientistas políticos a pulular conspicuamente nas redes de televisão.

Há, no movimento posto sob análise, característica extremamente preocupante, consistente no fato de serem os manifestantes, em imensa maioria, estudantes recém-saídos da adolescência ou começando a entrar na chamada maturidade, aquela permeando o fim do segundo grau e os percalços dos cadeados das universidades. Tais moços, certamente, podem receber, aqui e ali, insuflação de profissionais da insubordinação mas, com ou sem tais estímulos, o fenômeno aconteceria. Os meninos estão aprendendo a dizer não. Tem-se, no fim das contas, uma série de turbulências no comportamento popular, predominando o jovem. De outro lado, a Polícia Militar é e sempre foi violenta, treinando afanosamente especialistas na superação de tensões assemelhadas, perdendo-se, por exemplo, no acidente gerador de mais de cem mortes na penitenciária do Carandiru. Há circunstâncias, em épocas assim, em que a turba não se contém, mesmo sob pressões indizíveis. Por fim, embora os militares – e militares são – estejam a exibir gravações de condutas inaceitáveis concretizadas pelos insurrectos, outros filmes há mostrando, só a título de reforço do argumento, um policial militar destruindo o vidro da própria viatura, pretendendo, é claro, atribuir os danos aos manifestantes.

Não é, seguramente, o tempo de o Governador do Estado de São Paulo fingir que os acontecimentos são alvo de rotina na administração. Haddad, o moço, parece ter sido do ramo. Se riu, a risada foi amarela. Sabe que um resvalo pode provocar uma tragédia. Em princípio, os danos físicos não levaram à morte de alguém. Apenas transformaram uma jornalista em caolha, ou “cegueta”. Os mais casuístas afirmarão que lhe sobra o outro. O comentário é violento, mas merece lembrança perene de que bala de borracha pode matar – e mata. O patrimônio privado sofreu também. Sempre há danos materiais em circunstâncias assemelhadas, isto muito antes de o povo de Paris assistir, babando, à passagem das carroças ferrugentas levando nobres à guilhotina. É rezar para que as coisas não piorem mas, em qualquer hipótese, diga-se ao Governador do Estado que não sorria, nem silencie, porque se arrisca a lamentar, em seguida, a passagem de caixões de estudantes espancados pela Polícia Militar. Afirma Haddad que a PM é do Estado. Não. A Polícia Militar é o Estado. Faz diferença.

Assista ao vídeo em que policial quebra propositalmente a janela da viatura:

 

Em mulher não se bate, nem com uma flor. Muito menos com cassetete. Veja a sequência:

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