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As funções do Ministério Público

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Os incidentes de percurso misturando a Polícia Militar do Estado de São Paulo e as manifestações populares não têm grande relevo. Os policiais, regra geral, exibiram comportamento razoável, exceção feita a uma ou outra morte não atribuível diretamente aos policiais e ocasionais perfurações de olho de jornalistas, a poder de balas de borracha. Cotejando tais consequências com o número de manifestantes, o resultado prejudicial não é alarmante. A preocupação diz, sim, com o contexto geral da conduta da Instituição como um todo e frente a fatores sociais comezinhos. Por exemplo, como se dá, na Corporação em causa, o chamado cumprimento do dever. Isso tem relação indireta com o movimento chamado “populismo”, ou seja, deliberações populares norteadoras das decisões do governo em si, nisto compreendidos os Municípios, os Estados e a Federação. O “populismo” leva em linha de conta, com certeza, o preceito constitucional no sentido de que todos são iguais perante a lei. E devem ser, irmanando-se a comunidade em direitos e obrigações.

Não é por outra razão, fixado o dito composto ideológico, que se impõe, no Brasil, a positivação do fenômeno da transparência. Em suma, não há segredos oficiais, pondo-se à disposição do povo e de cada um o que houver nos escaninhos dos agentes da autoridade. Bem por isso, é certo, a Suprema Corte brasileira tem feito seus julgamentos abertamente, expondo os magistrados suas convicções pessoais, suas vaidades (todo ser humano as tem), seus trejeitos, ademanes, personalidade e até obstinação. Todo ministro, então, se transforma também em cidadão comum, embora usando a toga que nem mesmo o veste por inteiro, entortando no ombro de um e caindo pela espádua de um terceiro. Tem-se, portanto, o binômio “populismo-transparência”. De um lado a vontade do povo; de outra parte, a obrigação do Estado de exibir todos os seus atributos, por mais discretos que sejam. Isso tem vantagens na democracia, é certo, porque o cidadão reivindica do agente do Poder a justificativa daquilo que este fez, do que faz e do que pretende fazer, respondendo pelos erros, deformações dolosas ou infrações penais. Por outra vertente, a autoridade, entendida como aqueles intermediários entre o Poder abstratamente considerado e a cidadania, fica, por assim dizer, escravizada, pois empurrada continuamente a um canto de parede, reduzindo-se então sua capacidade de agir. Admita-se, em função disso, que a presidente da República esteja a buscar proposta milagrosa de aproximação com o povo, sabendo, entretanto, que se cuida de um balão de ensaio abjurado por qualquer professor de Direito Constitucional de uma das mil e trezentas e poucas faculdades que diversos ministros da educação puseram a viger no país.

A vontade popular, hodiernamente, é localizada nas manifestações físicas de indivíduos em coletividade das quais o país é exemplo e, mais ainda, nas comunicações via internet, obtendo-se às vezes resultados esplendorosos da concentração de opções da opinião pública. Curiosamente, esse tipo de escravagismo estatal engorda alguns setores do minotauro chamado Poder, numa espécie de assepsia, porque até manadas de bois selvagens precisam de líderes, valendo o mesmo para a humanidade. Tais segmentos podem concentrar-se, episodicamente, numa pessoa só, em corporações ou até mesmo em profissões religiosas, concentrando-se o potencial, em se tratando de coletividades, em alguns componentes. Isto significa, no frigir dos ovos, que o princípio respeitante à igualdade de todos perante a lei não é prevalente, porque aqueles mesmos que o defendem precisam dispor de uma sorte qualquer de Poder para concretização do preceito igualitário. Portanto, o juízo de igualdade, imposto por quem tenha a capacidade de a estabelecer, é regulamentado por quem pode mais pois, não podendo, perde a aptidão de fazer obedecer.

Forma-se, em razão do todo, um pretenso paradoxo. O povo, como entidade primacial, exige submissão à sua vontade. A autoridade, de certa forma subserviente, se dispõe a captar aquele momento coercitivo e devolver as exigências sob a forma de realizações voltadas às peculiaridades discernidas. Ao mesmo tempo, o populacho precisa ter alguém, ou alguns, direcionando aquela vontade de forma mais ou menos organizada, sob pena de desorientação e perda de objeto. Daí nascem as lideranças. Podem ser representadas por um moço quase imberbe despontando no meio do povaréu ou de um ideólogo preservado no meio da refrega mas, de qualquer forma, tudo tem um chefe – ou chefes. Ressumbram da aparente confusão alguns pressupostos: a) – Todos são iguais perante a lei. b) – A vontade do povo deve ser respeitada e obedecida. c) – A autoridade e seus agentes, subjugados pelo querer popular, hão de recolher as exigências maiores, dando-lhes apoio e efetividade. d) – Isso não se faz sem a escolha ou aparecimento de intermediários, sejam aqueles naturalmente postos à luz do dia pela governança, sejam, na outra porção, os mesmo jovens condutores do caudal de manifestantes. Dá-se nisso uma espécie de metamorfose. Os reivindicantes recebem, em razão da liderança, um pedaço da seiva constitutiva do Poder. No fim de tudo, uns e outros começam a significar a mesma coisa, até mesmo porque os antes poderosos são mimetizados naqueles que chegaram depois.

Volte-se à igualdade de todos perante a lei e à ideologia da transparência. Entenda-se que é muito difícil, ou impossível até, transformar o preceito em fenômeno real, porque a igualdade impede a liderança e a humanidade precisa do chefe para a sobrevivência. Dentro disso tudo, há necessidade de desigualamento, resguardando-se alguns exatamente para efeito do exercício do mandonismo. Isso diz com as chamadas prerrogativas ou, em se preferindo, com os privilégios adstritos a castas, ministérios ou profissões. É absolutamente extravagante a prática da igualdade sem o pressuposto de preservação da autoridade. Extrai-se disto uma espécie de oásis dentro do qual se colocam coletividades portadoras de tal requisito. Exemplifique-se com a magistratura, o Ministério Público, deputados, senadores, ministros de Estado e quejandos, uns com proteção posta no degrau máximo da hierarquia, outros também aquinhoados, embora em termos mais comedidos. Em outros termos, o exercício do Poder implica em blindagem daquele a exercitá-lo.

O texto, aparentemente, revela dose pequena de conexão. É conveniente realçar, no entanto, que em razão da chamada pressão concernente ao império da vontade popular, mais a já citada aplicação da transparência, as prerrogativas, ditos privilégios, perdem força paulatinamente no país. Um ministro do Supremo Tribunal Federal deixa de ser superior, valendo o mesmo para o desembargador do Tribunal Federal ou da Justiça Estadual. A toga não mais os protege. Os vetustos edifícios acolitadores dos julgamentos são apedrejados. As assembleias legislativas têm seus frontispícios destruídos. A central da diplomacia brasileira, o Itamaraty, tem portas e vidros escarificados. A Catedral de Brasília é submetida a ataques. Obras de brasileiros famosos, entre eles Di Cavalcanti, são destruídas. As câmaras de vereadores não escapam. Sofrem investidas análogas, valendo o mesmo para prefeituras, misturando-se nisso a vontade popular, a igualdade de todos e a transparência. A fenomenologia não tem qualquer originalidade. Aliás, nada no mundo é original. Tudo já aconteceu antes, bastando olhar superficial sobre a história. Parece que as tempestades turbilhonando a vida dos povos são necessárias para o surgimento, adiante, de estabilidade aceitável, convindo acentuar, então, que a mão adolescente portadora da pedra destruidora de uma pintura diáfana se encadeia na relação de causa e efeito entre o que foi e o que será. Ou então, a bala de borracha perfurando o olho do jornalista se integra nesse torvelinho maldito, numa expectativa de renascimento que é, bem analisado, o ciclo do qual algum benefício, adiante, pode resultar.

O Brasil atual está passando por tais contingências. Ministros da Suprema Corte se agridem em plenário, dando espetáculo contundente às multidões. E multidões são, quando somados os assistentes dos milhões de receptores ajustados nas salas de visita, nos quartos de dormir ou nas cozinhas das famílias humildes. Desembargadores, antes protegidos por togas brilhosas, são expostos à visitação pública e ficticiamente apedrejados pelos cidadãos, repercutindo o aviltamento no Poder Judiciário remanescente. Deputados, senadores, prefeitos e vereadores, mais servidores públicos de categorias múltiplas, são presos, difamados e oferecidos abertamente à censura indiscriminada, num arremedo de oportunidades outras em que os nobres perdiam as cabeças e os políticos caídos em desgraça eram enforcados, pendendo dias e dias sob as árvores, pendurados depois pelos pés. Sacerdotes, antes homiziados dentro dos templos, são vergastados porque suspeitos de pedofilia. Presbíteros em geral são encarcerados, porque detratores da aferição dos dízimos. Magistrados colocados no topo da hierarquia discutem comedidamente a legitimidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, abençoando-as a seguir. O soldado de chumbo enjaula o pretor que o enfrentou no meio da rua. A desembargadora é conduzida a uma delegacia de polícia, depois de se desentender com componentes de uma blitz preventiva. Governadores são entocados nos palácios, guardando-se para não serem lapidados. O juiz se intimida com o brado popular de recomposição da honestidade e parte para o outro extremo, condenando antes por medo que por convicção. Concomitantemente, os presídios apodrecem por dentro e por fora, incapazes abrigar a população muitas vezes excrescente das possibilidades físicas dos prédios. Esta é, em suma, a nação apresentada à juventude brasileira: pretores intimidados, políticos encurralados, o populacho ensandecido pela falta de oportunidade e inexistência de igualdade, insultos variadíssimos à necessária supremacia da autoridade e exigência de transparência, em gritos de guerra, no comportamento dos homens públicos. Bem examinado, o texto demonstra uma espécie de proteção a alguns, ou a partes desse calidoscópio tenebroso, porque há de sobrar, sempre, um recorte administrando a parafernália. Em outros termos, toda a história da humanidade gira, sempre, em torno de uma força episódica, sinônimo de Poder. Em palavras bem simples, quem tem força, em qualquer de suas manifestações, tem o Poder. A força decorre, também eventualmente, da violência em qualquer de suas formas, podendo concretizar-se na instrumentalização de castigos judiciais severos ou encalços cruentíssimas, tudo gerando pavor ou medo nos perseguidos. O Poder Judiciário, atualmente, só chegaria a castigar pesadamente porque recolhedor, igualmente, de um pedaço do temor, tornando-se então um sectário, nunca um condutor da violência judicial. A Polícia, órgão rotineiro de investigação, carece igualmente de capacidade coercitiva, seja porque se desmoralizou, seja porque a impedem de agir, dificultando-lhe os movimentos. Tocante aos órgãos federais de repressão, põem-se, na comunicação subterrânea, à disposição de quem detiver maior dose de força – ou de Poder. Examinando os chamados agentes do Executivo, a posição destes no país não se exibe muito saudável, pois tisnados pelo empobrecimento ético. Como sempre aconteceu no ressumbrar da história, os períodos assemelhados àquele verrumando o país dão imensa vantagem ao perseguidor, ao censor, ao apontador dos pecados alheios, àquele empunhador do chicote, ou mesmo a quem pretende, usando a força, o reaprumamento moral das cercanias. Identifica-se, no todo, como organização ou comunidade instrumentalmente adstrita às atividades desenvolvidas, sou até como salvador do povo, a Instituição do Ministério Público, à maneira, aliás, de comportamentos iguais perdidos ou escondidos nas brumas do passado. Nunca se viu, diga-se bem, o naufrágio do Ministério Público sob as crises sociais, econômicas ou morais assolando os países. A Instituição sobrevive sempre, ora grudada no autoritarismo, ora enlaçada no povo, mas sempre em perspectivas dominantes. Assim foi no golpe de Estado de 1964, assim foi lá atrás, assim aconteceu no entremeio da Constituição de 1988 e assim é agora, transformando-se o órgão numa espécie de agulha de bússola sempre apontando para o lado vencedor. Não se sabe, numa absoluta e sincera demonstração de perplexidade, se a Instituição aguarda a direção do vento a saber para onde deve dirigir-se ou se movimenta o curso da ventania para o destino mais nobilitante, tendo-se a sensação, inclusive, de que o desiderato nem sempre foi o melhor caminho para a nação. O raciocínio é traumático, mas necessário. O Ministério Público tem ancoramento remotíssimo, afirmando-se que seus primeiros passos foram dados na Roma dos césares. Prenote-se, agora, que tal Corporação é umbilicalmente ligada ao Poder Executivo, embora procurando cortar o cordão com tesoura adredemente preparada. Vale dizer que o chefe-geral da Instituição é nomeado, sempre, pelo presidente da República, tornando-se difícil à criatura investir contra o criador.

Do que foi dito resta conclusão nem mesmo muito sagaz: as perturbações sociopolíticas assolando o país têm dois pontos atuantes, consistentes no povo – ou massa – e no Ministério Público. Um e outro prosseguem na andadura. A massa exige modificações, enquanto os promotores de justiça agem à maneira do Procurador-Geral de França, ao tempo da tão falada Revolução, vergastando aqui e ali as costelas de possíveis infratores. Cumprem-se, com isto, duas tarefas: uma, a do povaréu, exercitando o poder de coação adstrito à revolta nas ruas; outra, a da Instituição que dá nome ao escrito, velando a mesma pela onipresença, sempre do lado do vencedor, acrescida da sobrevivência que é, no fim das contas, o ideário de toda a humanidade.

* O texto é sofisticado. Valerá o recado para quem tiver paciência de pensar.

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