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A lei fora da ordem

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Reportagem de página inteira publicada às fls. E/9 do jornal “O* Estado de São Paulo” editado em 20 de outubro de 2013, sob o título “A ordem fora da lei” sugere angustiadas reflexões do criminalista que em São Paulo, se decano não for, chega aos mais antigos, lidando com o Direito Penal há exatos 54 anos. Nessa medida, já viu todos os tipos de infrações penais, enfrentando centenas e centenas de processos, não se recordando, entretanto, de ter funcionado em um só que trouxesse, como fato provocador, o tráfico de entorpecentes ou de substâncias afins. A experiência profissional, ao lado disso tudo, o acostumou, lá atrás, quando quase adolescente, a visitar desde o posto policial escondido na mataria de uma favela até as chamadas penitenciárias rebuscadas, ofertadas as últimas como se fossem a solução do problema carcerário nacional. Por outro lado, embora não enfrentando as disputas sobre o chamado crime habitual de baixa estirpe, já defendeu advogados que o fizeram, envolvidos estes últimos em acusações de co-autoria ou participação. Nessa medida, embora não saiba tudo, conhece muito. Quanto aos vários estilos de cárcere, seu primeiro contato dramático com o assunto ocorreu em Santos, há uns 40 anos, quando localizou, numa cela infecta, um recluso nu, enlouquecido, guardado havia muito tempo  na cadeia pública construída no 4º e 5º andares do Palácio da Polícia. Aquela criatura, uma espécie de imagem deformada de ser humano, tinha os cabelos sobre os ombros e a barba quase lhe escondia o rosto. Davam-lhe banho às vezes com mangueira de jardim. Aquilo, para o jovem advogado, foi o estopim a provocar, meia década depois, a interdição daquele estabelecimento prisional, fechado sim até hoje, mas triste monumento ladeando a passagem de quem pretenda visitar aquela cidade praiana. Já se vê que a alegação deste criminalista com crimes, criminosos, a lei e a ordem teve um início traumatizante. É, aliás, fenômeno a não ser olvidado.

No entremeio de 50 anos o infra-assinado já viu coisa igual ou parecida, não fazendo acordo, entretanto, com o laisser faire, laissez passer, apanágio de um ou outro especialista preocupado exclusivamente com o êxito das despesas a efetuar.

De certo tempo a esta data, o panorama carcerário brasileiro assumiu feição dantesca. De outra parte, a criminalidade organizada, primitivamente episódica, tomou contexto assustador, transformando-se as chamadas “quadrilhas” em entidades empregando certa dose de metodologia permissiva da continuação de existência e aperfeiçoamento das porções em atividade. Se novidade havia, no Brasil, quanto à peculiaridade, cuidar-se-ia apenas de imitação ou adaptação daquilo que há muito proliferava em países vizinhos e mesmo no resto do mundo. Deixe-se  de lado maior consideração quanto às geratrizes de tais comunidades, examinando-se praticamente as consequências e as dimensões da guerra – e guerra é – entre os representantes da sociedade organizada (autoridades diversamente entronizadas) e a já definido ajuntamento criminal de baixo coturno destinado à prática habitual de crimes especialmente abjetos, realçando-se, é claro, o tráfico de substâncias entorpecentes e drogas assemelhadas, catalogadas na legislação adequada a tanto.

Verifique-se uma série de reflexões atinentes ao tema: a) – o Brasil é, no mundo todo, um dos mais cobiçados países pelos quais se dão os criminosos a esse tipo de comércio nefando. Não é preciso elencar razões, bastando dizer que tem vizinhança com nações cuja economia básica se fundamenta em plantações das quais se extrai boa parte dos produtos incriminados. Há outros motivos, mas a descrição reduziria a necessidade de síntese; b) – a repressão policial é absurdamente ineficaz, quer pelo desaparelhamento e pequenez dos órgãos a tanto dedicados, em se tratando de policiamento estadual, quer pelas altíssimas quantias em jogo, não se perdendo de vista que a corrupção é antiga como o mundo, interpenetrando os segmentos dedicados à investigação e à repressão. Cuidando-se da polícia federal brasileira, a instituição se desdobra no combate à traficância, exibindo resultados eficazes porque a imaculabilidade da instituição é expressivamente demonstrada e tem ligações formais – e informais até – com departamentos assemelhados postos em países outros, otimizando-se então, em certos casos, a prevenção, o acompanhamento e a captura final, o que não é o bastante; c) – paradoxalmente, surge um fenômeno cuja acentuação dialética não tem nada de incomum. Na verdade, a descoberta e a apreensão de grandes quantidades de drogas proibidas leva o mercado à escassez, com a resultante de elevação do preço do produto. O dependente continua a existir. Basta isso para a reativação da compra e venda, estipulando-se preço maior; d) – volteando ao redor, vê-se a quase nula atividade no sentido de apontamento e readaptação dos dependentes. Prova evidente disso aconteceu em São Paulo, Capital, com uma canhestra tentativa em época não muito distante, de se fustigar os consumidores de crack na região central. Reconheça-se a existência, ainda na metrópole, de pequeno grupo de abnegados, com relevo para o Desembargador Antônio Carlos Malheiros e o Advogado Otávio Augusto Rossi Vieira, dedicado à dificílima tarefa de recolhimento e tentativa de reabilitação de uns e outros, mas é como isolar agulhas em palheiros.

Voltando-se ao conflito entre os mantenedores da lei e da ordem e os criminosos dedicados às tarefas repugnantes já especificadas, viu-se que os primeiros, insubordinados quanto às limitações impostas pelo Código de Procedimento Penal e regulamentos ético-disciplinares vigentes, foram estimulados a agir extrapolando proibições constantes na legislação especificando o resguardo da diversificação de direitos e garantias individuais, uns dedicados à proteção da liberdade física em si, outros resguardando a intimidade, o patrimônio, o livre exercício, enfim, de atividade ou profissão. Dentro de tal contexto, uma das incursões além dos limites da legalidade foi a captação, via eletrônica (internet e interceptação de comunicações em geral) de comunicação verbal ou forma outra entre investigados e inocentes, pouco importa, consumando-se tal comportamento a poder de aquisição de caríssimo instrumental produzido por uma empresa, em São Paulo, atendente a pregão posto na imprensa oficial. Não se discuta, aqui, a dimensão do afrontamento à legalidade. É particularidade a ser examinada alhures. Importa exemplificar, aqui e agora, um comportamento das autoridades repressoras no sentido de acelerar a eficácia no combate ao crime organizado. Diga-se, então, que a disputa se acelerou, valendo realçar um aspecto curioso porque a criminalidade habitual está sempre atuando. Torna-se mais evidente quando a investigação e a atividade repressora aumentam em eficácia, isso não querendo dizer, portanto, enquanto as capturas começam a se avolumar que a criminalidade está sendo mais eficazmente represada. Repartiu-se apenas um pedaço dela, pois delito desse tipo se refaz como a cauda de certos animais pérfidos. De qualquer forma, dá-se um recado à comunidade dos homens bons e se fixa a saudável iniciativa de repulsa à delinquência grupal. No fim de tudo, é um jogo mais ou menos desequilibrado, conforme maior ou menor potencialidade de um ou de outro antagonista. Em outros termos, o fenômeno é perpétuo. Poder-se-ia dizer, parafraseando filme famoso ao tempo, que “Assim caminha a humanidade”. Encerre-se o tópico acentuando que embora a conclusão não seja muito entusiasmadora, o combate é necessário e até imprescindível, pois a inação das forças do bem provoca, obviamente, assustadora invasão da criminalidade usual.

Acentuou-se no início que a chamada congregação dos organismos dedicados à manutenção da Lei tem a dura tarefa de manter um combate crônico, sob pena de esgarçamento, dos obstáculos à expansão da delinqüência habitual. Isso se faz muito difícil, porque o agente da autoridade tem parâmetros legais a obedecer. A tentação de extrapolamento é enorme, pois há múltiplos acessórios à disposição e meios extralegais de investigação. Firmado na autêntica possibilidade de fiscalização externa das atribuições da Polícia Judiciária, o Mistério Público se deixou seduzir pela utilização da polícia militar, força auxiliar do exército e com atuação muito disciplinada, não se encontrando, entre as possibilidades, a prestação de serviços ao Parquet. Mas isso é outra história. É preciso delimitar muito bem os objetivos do estudo. Insista-se no fato de o combate entre autoridades e delinquentes extravasar rotineiramente, dos dois lados, os lindes fixados na legislação correspondente, partindo-se do fato de ser bandido sempre bandido e o mocinho não poder transformar-se em igual. Mas a briga, já se disse, é cruenta e o exercício arbitrário da autoridade aparece como uma porção de melaço a extremar o feromônio das formigas vermelhas do Amazonas. Aquilo pode embriagar o agente da Lei. Assim, quando menos se pensa, o MP, ordenado inclusive para exigir o cumprimento da lei pesquisa as infrações penais por interceptações telefônicas, mas omite o registro de tais escutas, segundo farto noticiário posto nos maiores matutinos de São Paulo. Isso é o básico, mas mesmo isso ainda não se põe a debate na síntese em desenvolvimento. É melhor, com efeito, o não desaparelhamento do enlace – e enlace é – entre aqueles que, em tese, reforçam o lado punitivo devidamente regulamentado e as comunidades organizadas vivendo no sorvedouro das alimentações obtidas no chafurdamento usual de ilicitudes diversas, com relevo para o tráfico de substâncias de venda e uso proibidos. Essa é questão levando a suavizarem-se as arestas éticas antepostas ao caminho do justiceiro perseguir o meliante assume características muito curiosas, mas não menos dramáticas. Segundo alguns filósofos, ético é aquilo que satisfaz a maioria. A título de exemplo, a incineração de judeus em Dachau atenderia ao são sentimento do povo alemão. O anti-semitismo tinha, portanto, componente ético adequado. Domestique-se o problema, trazendo-o ao cerne da disputa entre as chamadas forças da lei e o crime organizado. Na medida em que são obtidos resultados palpáveis na profilaxia da marginalidade atual, vão-se os anéis e fiquem-se os dedos, porque a grande imprensa, mais a comunidade, aplaudem as conquistas na luta contra o crime. Isso, alhures, ainda no território nacional, deu existência, estimulou e maiorizou segmentos secretos da autoridade, bastando elencar, no Rio de Janeiro, a Scuderie Le Coq e, aqui em São Paulo, o esquadrão da morte, agasalhado inclusive por Secretário de Segurança, à época, abastardando qualificações de grande jurista que fora. Existe, é certo, divergência marcante entre o momento presente e aquele que já foi, mas o beliscamento de porções da ilegalidade funciona como isca posta à frente de felino faminto. É terrível isso, mormente quando o defensor da lei é induzido a nebulizar o parâmetro da censura interna, pois não há quem possa fazê-lo, na medida em que, ele, o agente, pertence a corporação fechada sobre seus próprios destinos, enobrecedores, é claro, mas por isso mesmo pedindo especial cuidado na correta atuação. Não é este, ainda, entretanto, o ponto nodal de toda a dissertação. Iniciou-se, no pretérito, com a imagem de uma criatura enlouquecida e enjaulada numa cadeia podre. Veio-se de lá até o presente sem referencia maior ao chamado sistema prisional, sabendo-se que este é o destinatário natural de grande parte dos despojos da guerra entre os bons e os maus. Verificando-se a execução penal brasileira, já não se sabe bem quantos são os milhares de mandados de encarceramento não cumpridos, estimando-se entretanto em mais de duzentos mil os condenados efetivamente aprisionados. Conclui-se que se todas as capturas fossem realmente consumadas, a chamada cidadania seria convidada a destinar, se e quando o tivesse, o quartinho de fundos da sua casa, para o enjaulamento dos presos não incorporados ao sistema. Admita-se uma certa dose de ironia sádica no raciocino, mas assim é. Além disso, não se perdendo o miolo do escrito, a execução penal brasileira é podre, valendo o lamaçal num e noutro sentidos. No primeiro, grande parte de institutos dedicados ao cumprimento de sanções penais suporta carga quatro vezes maior que a prevista, disputando os encarcerados, inclusive, lugares para poderem sentar no chão, numa mistura de suor envelhecido, excrementos mal expelidos, bafo desatinado e olhares escurecidos na falta de reflexo da luz do dia. As Academias de Direito brasileiras nas quais o país é vencedor universal em número, deveriam obrigar professores e alunos à visitação desses prostíbulos da liberdade, não para estadas perfunctórias, mas para o real aquinhoamento daquelas tragédias que, existindo e sendo mantidas, não chegam a povoar os sonhos da nossa magistratura porque, no final das contas, o ser humano se acostuma com tudo e até com a vizinhança da tragédia. Os administradores perdem, inclusive, a noção do cheiro daqueles receptáculos ultrajantes. Ali estão, certamente, condenados empedernidos, assassinos reincidentes, pedófilos, ladrões e infratores localizáveis no Código Penal inteiro, mas eles tem direitos e garantias sim, não tendo êxito nas reivindicações. Os encarcerados têm mulheres e filhos. Não os tendo, restam-lhes pais, mães, irmãos ou irmãs. Se faltarem todos, sobra ainda uma prostituta de baixa extirpe que convencionou ser a companheira do malfeitor. Não se pode esquecer que hoje, frente à jurisprudência da Suprema Corte, é possível o casamento entre pessoas do mesmo sexo, merecendo portanto respeito aqueles ou aquelas dispostos a tanto. Já se percebe, ainda no diapasão, o rebotalho da disputa entre autoridade e o marginal. Cuide-se das visitas, intimas ou não, pouco importa: as primeiras são admitidas depois que as mulheres (intimidade clássica) ficam de cócoras, pernas abertas, entreabrindo os orifícios corporais a saber se trazem, ou não, para o s parceiros bateria de celulares, peças diversas de eletrônica ou até porções de maconha, cocaína e substancias análogas. Tais verificações são feitas, segundo consta, por agentes femininas. Sabe-se lá. As últimas, na manifestação mais natural deferida aos seres humanos pela criação, têm seus congraçamentos sexuais quando admitidos, em cubículos cuja inacessibilidade é, hoje, muito pouco confiável, havendo exemplos, até na internet, de violação desse tipo de contato depois do qual, na vida comum e até lá pode surgir a maravilha da propagação da espécie. Pontilhando o território nacional um ou outro presídio atende aos requisitos mínimos estabelecidos na legislação. No outro extremo, parido sob a batuta de advogado criminal fazendo as vezes de Ministro da Justiça, o terror é onipresente, constituindo-se a prisão em cabines de concreto e aço dentro das quais o condenado fica dias e dias, reservando-se-lhe o pedaço de Sol passando pelo teto exíguo em determinada hora do tempo que se vai. Continuando-se no relato do despautério representado pela execução penal brasileira, é bom dizer que a existência humana tem sempre dois valores antepostos: o positivo e o negativo. Tudo tem seu contrário. Até os enlouquecidos passam por períodos de sanidade psíquica. Os delinquentes praticam boas ações (segundo líderes marginais, impedem a entrada de crack nas cadeias. É indiscutivelmente, uma conduta elogiável). Os agentes da autoridade, de sua parte, também fazem coisas más enquanto burlam a Lei na consecução de fins em si legítimos. Faça-se a digressão apenas para realçar que o outro lado do presidiário é, sem dúvida alguma, a família que mantêm fora, espúria ou não, mas sempre um enlaçamento sanguíneo ou afetivo. Evidentemente, querem garantias mínimas de terem a grei respeitada, relembrando-se hipóteses em que encarcerado e companheira transam sob os quatro pés de mesa protegida por uma toalha, uns a poucos metros dos outros. Deixe-se de lado, por não fazer parte integrante do discurso, a interceptação ambiental de parlatórios de presídios, praticada tal atividade repulsiva para violar o segredo de diálogos entre advogados e seus constituintes.                   

Esse é, em pinceladas cinzentas, o panorama geral do combate brasileiro entre autoridade e a delinquência, às vezes simplesmente impactante, outras vezes comunheira na repetição de infrações. No meio disso tudo a refrega aumenta em agressividade praticada pelos justiceiros e retorsão consubstanciada pelos bandidos. Isso não é novidade alguma. Já existia antes mesmo dos senhores feudais acastelados e protegidos pelos fossos. De qualquer forma, o problema está aí, assumindo o Ministério Público feições de heroicidade e reagindo os antagonistas de forma não ortodoxa, sabendo-se que as manobras de reação neste e noutros tempos são repetitivas. Os delinquentes, segundo consta na imprensa oficial, se organizaram em entidades informais, mas nem por isso ineficazes. As mulheres de presos, os filhos, os familiares enfim, precisam visitá-los e redimir, de alguma forma, a plenitude do afastamento forçado. Os encarcerados estão, as vezes, há centenas de quilômetros dos domicílios, violando-se com isso a Lei de Execução Penal. É preciso que as famílias durmam em algum lugar e se alimentem, na medida do possível. Assim, ainda dentro da informalidade, consta que as viagens e estadias são modicamente estipendiadas pelas chamadas organizações paralelas, sem novidade, também. Isso sai na imprensa e arremeda procedimentos concretizados no mundo inteiro em casos assemelhados. Sabe-se, porque verdade sabida independe de prova, cadeias públicas e presídios, sem exceção de centros de detenção provisória, têm uma subcultura alicerçando, inclusive, o uso das substâncias referendadas no intróito. Estancado o fluxo, aquilo explode.

A solução dos múltiplos problemas inexiste. O enovelamento é perpétuo. Relembre-se, em Nova Iorque, o regime de “tolerância zero” imposto pelo prefeito Rudolph Giuliani. Funcionou. Soturnamente, a criminalidade se prepara a suprir as deficiências localizadas. Ou então, mudam-se para territórios menos áridos. O embate continua. Dizendo ainda com o entrechoque gerado por autoridades e seus agentes e a delinquência organizada, a grande dificuldade encontrada pelos analistas é o reconhecimento de que o preposto do poder legalmente instituído não pode, sob justificativa alguma, saltar os muros da juridicidade da conduta. Se o fizer, vira bandido também. Dentro do contexto, o comportamento de quem se omite e desobedece as determinações da lei de execução penal pratica infração, porque descumpre dever de ofício. Evidentemente, serve a todos a desculpa no sentido de que a realidade é supinamente inabordável por tentativas de regeneração daquela podridão genérica. Em outras palavras, a magistratura relação alguma tem com o fenômeno, os juízes de execução penal relação alguma têm com o fenômeno, os executores relação alguma têm com o fenômeno, o Poder Executivo relação alguma tem com o fenômeno, o Ministério Público relação alguma tem com o fenômeno e, no fim, a cidadania relação alguma tem com o fenômeno, porque a vontade do burguês, no âmago, é que o bandido morra, pois dá menos trabalho e para de ameaçar o patrimônio e a intangibilidade física do povo. Tocante aos advogados, algo lhes resta a perturbar a tranquilidade, porque têm, entre suas atribuições, aquela de zelar pela manutenção das garantias individuais asseguradas na Constituição. Diga-se, alguns assumem tais obrigações. Não muitos, na medida em que mexer nesse formigueiro é perturbar o sistema, desarticulando a tranquilidade da coisa posta.

Arredonde-se: o sistema prisional brasileiro é nauseabundo. O tratamento dispensado ao encarcerado constitui exercício ilegal de função pública. A recepção dos familiares do encarcerado, seja para visitas íntimas, seja mesmo para que o preso possa abraçar a filha a se acostumar com o odor da grande maioria dos estabelecimentos prisionais é ultrajante, obrigando-se as mulheres a ficarem de cócoras em exposição a vigilância nem sempre discreta dos agentes prisionais. Além disso, as denominadas visitas íntimas, principalmente naqueles redutos encarregados de conter delinquentes considerados perigosos, são – ou eram – eletronicamente monitoradas, na pior intromissão à intimidade que o ser humano já conseguiu inventar. Do outro lado, ou do lado das organizações ditas criminosas, há poucas regras, mas uma delas é de respeito à mulher de cada um, tanto assim que ninguém se atreve, no cadeião, a tentar manipular a visita do outro. Em síntese, há delinquência do lado de cá, quando a autoridade, qualquer que seja, descumpre sua obrigação profissional e quando sectários menores o fazem diuturnamente. Referindo-se à parte oposta, é delinquencial por vocação, mas não pode ser combatido à margem da lei. Este é, seguramente, o ponto nodal da questão: quando o mocinho descumpre as obrigações impostas pela estrela de xerife, deixa o copo de leite sobre o balcão do saloon e emborca a aguardente após encostar sua caneca na do outro. E o navio segue seu rumo.

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