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Quando a cruz de Cristo vira porrete


Paulo Sérgio Leite Fernandes

Estava eu outro dia na Praça da Sé, logo abaixo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. O prédio é cheio de corredores estreitos embaixo, alargando-se nos pavimentos superiores. Para quem o conheceu na origem, ou logo depois, o Palácio da Justiça paulista abrigava as trinta e quatro varas criminais, mais o agora desativado 1º tribunal do júri, vigiado pelos bustos de advogados famosos, destacando-se Dante Delmanto. Pretende-se colocar ali, igualmente, a estátua de Waldir Troncoso Peres. Há quem esteja a tocar o empreendimento com seriedade.

Falando nisso, eu olhava o imponente prédio citado quando, repentinamente, alguém, de uma das janelas, atirou um objeto na calçada, não muito pesado por certo, porque se o fosse provocaria danos físicos em mim. A coisa saltitou no concreto e veio aos meus pés. Era uma cruz, grega talvez, em madeira, com cerca de 20×10 centímetros. Ao centro um medalhão contendo escritos indecifráveis e a figura de um santo, isso na parte de trás. A frente da medalha tinha outra cruz contendo, de cima para baixo, a inscrição “CSSML”. O braço exibia “NDSMD”. Nos quatro lados, quatro letras: “C”, “S”, “P” e “B”. Cuidava-se de madeira velha e leve, dando a impressão de ter feito parte de efígie maior. A cruz estava inteira. Colhi-a e levei para o escritório. No fim das contas, não se poderia permitir que rodas de automóvel ou passantes a destruíssem. Seria grave ofensa a Deus*.

Aquele sinal sagrado continua, daquela data em diante, em lugar de honra na minha biblioteca. Faz parte do que não se joga fora, nem se esconde, embora às vezes dê vontade, pois lembra a necessidade de permanente bom comportamento, nem sempre possível.

Veio-me o achado à memória, atualmente, por duas razões: saber, se possível, quem se teria desfeito daquele símbolo religioso, principalmente jogado de uma casa de justiça. Interessando-se por isso, Nalini o terá de volta. Afinal, surgiu das penumbras. Além disso, vi nos jornais, semana passada, em Kiev, a fotografia de passeata popular contra o governo ucraniano. Uma velha – era velha mesmo – batia na cabeça de um soldado fortemente armado, tentando, com a cruz de madeira que trazia, forçá-lo a largar rapazelho arrastado pelo casaco. De lembrança em lembrança, chegou-me o gravíssimo acidente, consumado em São Paulo no bairro de Higienópolis, quando policial militar baleou um moço, durante manifestação qualquer, parecendo ser contra a Copa do Mundo de futebol. Afirmou o promotor de justiça Grella, secretário de segurança pública (simbiose ruim), que o disparo o foi em legítima defesa, porque o jovem tinha estilete em seus pertences, bolinhas de gude e explosivos. Parece que tais produtos, se e quando estivessem com a criatura, se encontrariam na mochila. Na verdade, situação extremamente confusa, consumada logo depois de ter sido entregue ao promotor de justiça Grella um memorial contendo 45.000 assinaturas pedindo a supressão do uso de balas de borracha, muito inferiores em letalidade, é claro, ao disparo feito pelo PM. Diga-se, para arredondar o texto, que servidor público não pode pretextar legítima defesa. Tal excludente não se insere entre aquelas postas a seu favor na lei penal material. O funcionário está no exercício regular de função pública ou não. Em princípio, aliás, não fugia, mas perseguia. Isso é muito feio. Vale a pena dizer, por fim, que o conúbio entre o Ministério Público e a Segurança Pública, agora efetivo, é extremamente constrangedor, porque o chefe da Polícia provém de quem precisa e deve exercer o controle externo da Corporação. Isso geraria, em circunstâncias normais, espécie de coceira ruim no corpo. Inexistindo tal resultado, é sinal de imunidade. Ou defeito de assimilação. O sintoma, ou respectiva ausência, tem nome em medicina. Quando o doente perde a capacidade de sentir, morre sem saber.

* Clique aqui para obter mais informações sobre a cruz referida.

 

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