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Algumas fabulações sobre o golpe militar de 64 (Marcando o cinquentenário)

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Evidentemente, o golpe militar de 1964 começou a acontecer muito antes, desde a cogitação até o desfecho, afirmando-se que eclodiu em 31 de março daquele ano. Para mim não foi assim. O golpe, para nós que naquele tempo éramos advogados jovens, eu com 29 anos, a deflagração sucedeu depois da meia noite, concretizando-se, portanto, no dia 1º de abril daquele ano, mundialmente conhecido como “O dia da mentira”. Nós não víamos a coisa daquela forma, porque Santos, pulmão onde o Brasil respirava grande parte do seu potencial econômico, era uma baderna. De um lado, o governo João Goulart se misturava em disputas acirradas, sindicatos nas ruas, pressões enormes de trabalhadores, com ou sem razão, pouco importa, mas sempre influenciando fortemente o desequilíbrio existente. De outra parte, ainda naquela cidade portuária importantíssima, havia um chamado “Fórum Sindical de Debates” imperando em toda a zona alfandegada, gerando paralisações maciças e tornando perigosíssima a disputa ideológica. Não seria difícil a eventual antagonista um acidente num porão de navio, morrendo após receber, lá embaixo, um saco de 60kg de café descuidadamente escorregando por um alçapão. Havia, ao mesmo tempo, derivações dramáticas. Por exemplo: quando o Fórum de Debates decidisse, invadia-se o Palácio da Justiça e a as audiências eram interrompidas. Juízes recolhiam suas togas, advogados voltavam aos escritórios e o Poder Judiciário parava. Evidentemente, a burguesia não gostava daquela conturbação, pois o município tirava o sustento dos navios que chegavam e partiam, isto no maior porto da América do Sul. Os advogados, sabidamente parte relevante na condução do povo a um ou outro caminho ideológico (v. Danton, Marat, Robespierre e outros), estavam muito inquietos. Havia, na reação àquele desenfreado movimento sindical, influência norte-americana sim. O presidente, em 1964, era Lyndon B. Johnson, mas a vigilância do Tio Sam sobre o fenômeno brasileiro acontecia lá atrás, com Kennedy, morto em 1963. Os conflitos entre tendências políticas são assim. As pessoas morrem, mas o processo continua. Havia, com certeza, infiltração de dinheiros remetidos por organismos como o “IBAD” – Instituto Brasileiro de Ação Democrática, com ligações no chamado “Ponto IV”. Isso, no fim das contas, não interferiu na rebeldia da chamada cidadania contra o desastre sócio-econômico em efervescência. O burguês quer comer, cuidar da saúde dos filhos, ter emprego estável, fazer cama de vez em quando, amadurecer olhando a descendência bem entranhada na comunidade, envelhecer sem grandes sustos e partir rodeado de parentes, amigos e quejandos, sem faltar o sacerdote, a mãe-de-santo, o pastor ou rabino, conforme as circunstâncias, pois uns e outros constituem alguma garantia na viagem. É sempre, no fim das contas, o escopo da maioria. Daí, em 1º de abril de 1964, chegou pelo rádio e pela televisão a notícia da entronização dos militares, com João Goulart naquela movimentação que o deixou exilado no seu império de boiadeiro. Naquela madrugada de primeiro de abril de 1964, a alta burguesia de Santos se reunia em uma igreja. Era um dos mais antigos templos da cidade, situado logo ali na praça José Bonifácio. Eu havia sido despertado por um telefonema de alguém que me convocava. Havia uma senha para se entrar pela porta principal da igreja. Três pancadas iniciavam o procedimento. Abria-se um postigo. Uma voz dizia: – “Quem vem lá?”. O visitante respondia: – “Venho da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo”. O outro precisava dizer: – “E viva Nossa Senhora”. Seguiam-se outras três pancadas com o punho ou chave da automóvel. Entreabria-se o portal. No interior as pessoas gradas da Comarca estavam reunidas. Havia sacerdotes também. O nome dos circunstantes não importa. A quase totalidade é morta. Eu, ainda não trintenário, era o mais moço. Distribuíram-se armas e braçadeiras à moda da insurreição paulista de 1932. Deram-me uma arma reluzente, ainda na caixa. Um Smith & Wesson 32 cromado e uma caixa de balas. Os comunistas iam invadir a rádio local. Era preciso combatê-los. O distribuidor dos petardos era um delegado de polícia, já maduro àquela altura. Faz tempo está prestando contas às divindades. Acontece a todos.

Aturdido com o que acontecia, estojo da arma no sovaco, sentei-me num banco da igreja. Comigo tomou assento um colega de turma na Faculdade Católica de Direito de Santos:

- E agora Paulinho? O que vamos fazer?

- Não sei bem, mas não vou sair por aí dando tiro a torto e a direito. Nem sei manejar esta trolha.

O colega tinha também uma caixa comprida, em papelão. Devia ser carabina. Desajeitado, perguntou como usar o objeto. Respondi: – “Deixa embaixo do banco ou leva pra casa. Cê que sabe!”.

À frente, havia debate acentuado entre os defensores da cidadania. Havia uma ou outra mulher, nenhuma jovem. Dir-se-iam matronas. O tempo foi passando. Nós dois sentados no banco duro da igreja (aquilo, se demora, começa a machucar os glúteos. Nunca vi igreja com cadeira acolchoada, a não ser na Capela Sistina onde, aliás, turista não senta).

Havia uma porta lateral estreita. Um olhou pro outro e decidimos ir embora. Fomos ao Gonzaga, à beira da praia. Havia dois hotéis clássicos. Um, o Parque Balneário; o outro, o Atlântico Hotel (Washington Luís, quando Presidente, hospedara-se no último). Uma balaustrada separava da calçada os hóspedes que quisessem tomar uns aperitivos no bar aberto a um ventinho cheirando a maresia. Sentamos lá, cada qual com seu estojo sob o braço. Ali, com certeza, tomei o grande e único porre da minha vida. O dia primeiro de abril de 1964, no que me consta, foi assim. Acabei em casa, a pé, trançando as pernas e levando solene esculhambação da patroa.

O clima, nos anos seguintes, ficou muito ruim. Eu tinha recebido uma arma que não queria ter. Daí, visitei a autoridade policial que me dera o presente. Doutor, não quero mais isto. Não participo de luta armada e não estou acreditando muito nessa reação contra comunista. Toma este bicho de volta (o revólver).

O delegado, velho malcriado e violento, me olhou nos olhos e disse: – “Que arma?”

Respondi: – “Esta aqui, delegado!”.

O gajo só disse: – “Não tô vendo arma nenhuma. E some da minha frente, porque senão você vai pro xadrez!”.

Indagar-se-ia qual o destino derradeiro daquele trabuco. Há aqueles que o enterram no fundo do quintal. Outros o jogam no mar. O revólver com que Getúlio se matou está exposto no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. O meu Smith & Wesson não tem essa grandeza. Deve estar enferrujado em algum terreno baldio, em homenagem ao golpe de 64.

Continuando a escrever sério, diga-se que a classe dos advogados começou a perceber que o movimento militarista era, sim, um golpe terrivelmente molestador das liberdades e direitos dos cidadãos. Multiplicaram-se as torturas. Suspendeu-se o Habeas Corpus. Dentro do contexto, a advocacia toda se dispôs a proteger os perseguidos pelo regime totalitarista. O resto, ressalvadas as fábulas, todo mundo sabe, cada qual guardando seu pedaço do quebra-cabeças. Advoguei razoavelmente para estudantes recolhidos a cárceres, um ou outro menino fugido e alguma criatura com dimensão razoável na resistência aos milicos. Contrariamente a muitos participantes da reação aos militares, sempre fui bem tratado por estes, sem exceção da auditoria de guerra, porque nunca tive vocação política. Apenas defendia gente, com muito amor, é claro, mas sempre gente. Não gostava e não gosto de farda, mas isso é outra história. Fiquei detido em quartel, aos 17 anos de idade, porque abandonei a guarda, num 31 de dezembro, pulando o alto muro vestindo smoking alugado num brechó japonês (ainda hoje é difícil achar japonês mantendo brechó). Fugi para ver uma namoradinha chamada Neuza, linda e de santíssima memória. Preço caro, pois não é bom ser encarcerado em reduto militar vestindo traje de gala. Quando me indagam por que não gosto de militares, pensam que é por causa do golpe de 64. É verdade, mas Neuzinha tem peso muito maior na repulsa.

Já se vê, nessa lembrança dos anos contados a partir de abril de 1964, o conjunto de episódios pitigrillescos. Esta é parte do contável. O resto é horrível e fica comigo. A não ser que, dia desses, me venha um ataque de intemperança. Aí conto tudo. E não é bom. Vale, para manter a discrição, o respeito a quem já morreu. Defuntos ficam defuntos. Não se fala mal de quem já foi. Ficam defuntos. E se acabam. Prestam suas contas. No fundo, muitos têm contas a prestar. Ficam na boca do povo.

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