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Adauto Suannes partiu

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Hoje é 11 de abril de 2014. Há quinze dias, Marcos da Costa, presidente da Seccional de São Paulo da OAB, mais eu, fomos visitar o novo e jovem presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Fábio Prieto. Cuidava-se de combinar dia e hora marcando a aposição de assentos para advogados que pretendessem sustentar oralmente recursos nas Turmas e no Tribunal Pleno. Era muito antiga a aspiração da classe, porque o Estatuto não estabelece distinção alguma entre as prerrogativas do Ministério Público e da Advocacia. Entretanto, os defensores eram postos em lugares reservados à plateia, depois das sustentações, ficando a tribuna vazia, circunstância a dificultar o equilíbrio do contraditório.

O gabinete do presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região é muito amplo, mas discreto. Não havia um só processo sob as mesas. Sempre reparo nisto quando visito alguém, pois o escritório é como a casa da gente. Precisa ser organizado.

Fomos muito bem recebidos, os dois. Perguntava-me o que estava fazendo ali, porque a conversa era entre os dois. Lembrei-me, repentinamente, do fato de ser, quem sabe, o mais antigo criminalista de São Paulo. Deve haver outro mais velho, porque sempre há um mais antigo. Se houver, peço desculpas pela ousadia do decanato. Curiosamente, enquanto conversávamos, o passado veio à tona. Revi aquele moço enquanto jovenzinho, meu aluno, como tantos pontificando hoje na carreira jurídica brasileira. O cérebro humano é instrumento formidável de conjugação e anteposição de centenas de contingências. Assim, o retrato de Prieto e o do Marcos da Costa, ambos rapazolas, apareceu no pensamento. Junto veio uma profusão de gente, uns muito amigos, outros menos fixados, mas significando a ocupação de um pedaço da chamada memória permanente. De repente, lá atrás, surgiu a figura de Adauto Suannes morto em 27 de março passado. Estimadíssimo por nós todos, embora nos víssemos pouquíssimo. A biografia de Suannes vai longe. Era professor de Direito. Fundou sociedades ligadas ao ramo, fez pinturas diversas, escreveu livros jurídicos e outros. Desenhava, pintava bem e, no fim de tudo, era bom dançarino. Vi-o, certa vez, dançando com sua mulher, vinte anos passados, quem sabe, muito sorridente, o casal. Cruzamos, adiante, em debates forenses. Eu o chamava de incendiário, merecendo igual apelido. Sempre fomos críticos vorazes do sistema judiciário, ele enquanto Juiz, eu sempre advogando.

A miscelânea vertendo na ideação cerebral, repito, é fantástica. Houve dia, em sustentação oral no Supremo Tribunal Federal, em que no meio da peroração me apareceu ao lado uma mulher muito bonita, vestida de branco, a me incentivar. Coisa mirabolante, é óbvio, mas já houve quem me dissesse ter acontecido coisa semelhante no exercício da arte de falar. Dentro do contexto, Adauto surgiu figurativamente no gabinete da presidência quase como coisa natural. Creio que, no fundo, eu gostaria que ele estivesse conosco lá, bem vivo, atuante como sempre, agressivo talvez, mas simpático. Não me formei nas Arcadas. Ele era da turma de 1960. Deve ter aprontado horrores, enquanto estudante.

Li uma bibliografia de Albert Einstein. Em suas cogitações, o grande físico afirmava que o tempo é produto da nossa imaginação. Nesse aspecto, não haveria passado, presente ou futuro. Enfim, aquilo tudo estaria dentro da nossa cabeça.

Perceba-se o inusitado da crônica: começa-se no gabinete de um jovem e promissor presidente de um Tribunal, acompanhando outro jurista líder de uma classe enorme de profissionais. No entremeio os personagens vão surgindo, como num cartaz que tenho em casa, representando uma cena do filme “E La Nave Va”, de Federico Fellini. Aparece na lembrança até o rinoceronte que vinha no porão do navio. “Meno Male”. Resta a esquisita impressão de que me levaram à sala do presidente do Tribunal Federal porque tenho o excêntrico título de sobrevivente. Os gajos vão indo embora, cada um tatuando e machucando o corpo da gente, eles e elas, pois elas se vão também. A gente fica, como testemunha do que já foi. Depois vêm outro e outro, e mais outro. E La Nave Va. Saudades do Aduato.

* Texto originalmente publicado no Conjur em 11 de abril de 2014.

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