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Lesões corporais no esporte – II – Ainda o caso Neymar

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Mal se acabava de preparar Ponto Final correspondente a verdadeira caça empreendida contra Neymar, durante a Copa, surge, no meio do jogo do Brasil contra a Colômbia, outro fato trágico: o moço sofreu uma “joelhada pelas costas”, desferida por Camilo Zúñiga, integrante, obviamente, do time adversário. O finado Waldir Troncoso Peres, dos maiores criminalistas que o Brasil teve e tem, explicava diferença entre “tiro nas costas” e “tiro pelas costas”: o primeiro é explicável; o segundo constitui covardia, traição, atividade melíflua, enfim. Redes de televisão, no mundo inteiro, retrataram a cena que o juiz não viu: a agressão veio impactantemente, dirigindo-se o joelho exatamente contra a coluna vertebral do atacante brasileiro. No fim das contas, submetido o jovem a exames eletrônicos, descobriu-se uma fratura bem descrita nos jornais, tratável sem cirurgia, mas exigindo repouso para consolidação. Menos ruim, com certeza, mas o Código Penal brasileiro trata do assunto como, no mínimo, lesão corporal grave, ou seja, aquela que impossibilita o ofendido de exercer as ocupações habituais por mais de trinta dias. Ao lado disso, o Código de Processo Penal, doutrinariamente analisado, reparte a prova dos resultados materiais da infração em três etapas: a) – o corpo de delito propriamente dito; b) – o exame do corpo de delito; c) – o laudo de exame de corpo de delito, sendo este último a comprovação formal, para efeitos processuais, da existência da infração. Tocante ao episódio vertente, há constatação plena, clara e insofismável do acontecimento, em todo o desenvolvimento, não se podendo negar a ligação entre conduta e resultado. Faltaria então apenas a perícia exigida no Código de Procedimento.

         Há, não se negue, algumas características ínsitas às chamadas lesões no esporte. Na luta de boxe, o ferimento no corpo do adversário é regra. A intangibilidade é exceção. Os contendores, após o combate que, aliás, é repugnante, explicando-se por atavismos ligados à natureza do ser humano como bicho, deixam o tablado ostentando lesões diversas, centralizadas, quem sabe, no rosto (boca, região orbital, supercílios e quejandos). Proíbem-se os chamados golpes baixos. É bom não esquecer do elo entre Mike Tyson e Evander Holyfield: Tyson, com uma dentada, cortou um pedaço da orelha do antagonista. Foi punido. O futebol é um jogo de contato físico, não direto, é certo, mas derivado da perseguição à bola. No meio daquilo tudo os jogadores se empurram, trançam mãos e pernas, desequilibram-se uns nos outros e, enfim, procuram impedir que um litigante vença o debate corporal. Isso faz parte de regras não escritas, mas subliminarmente verificáveis, exceção feita às extravagâncias constituídas pelas chamadas “faltas”, dependendo a constatação, não se discute, da interpretação do juiz, autoridade máxima em campo, admita-se, mas falível, convenha-se. Existem oportunidades, no entanto, em que a denominada “falta” extrapola os limites da razoabilidade, vendo-se então, sem qualquer dúvida, comportamento anômalo de quem praticou o ataque. Aquilo, diga-se de passagem, exige apreciação normativa, ou seja, de fora para dentro, a saber quais as intenções do agressor ao consumar a atividade lesiva. Urge conhecer, dentro de tal contexto, o que se passava na mente do outro enquanto consumava o ato vulnerante. Na verdade, mesmo o mais ortodoxo jurista não se livra da interpenetração da intimidade do pensamento do examinando. Em outros termos, qualquer pretor, em casos tais, precisa interpretar o nexo de causalidade entre a chamada conduta material e a intenção. Quando alguém dispara uma arma de fogo, machucando ou matando o desafeto, alegará, de vez em quando, que não queria assassinar, nem mesmo lesar, mas o revólver disparou oportunisticamente, ligando-se o resultado a defeito mecânico. O Direito Penal, no fim das contas, se dirige àquilo que o autor pensou enquanto fazia, punindo-se o corpo, em consequência, por não se poder castigar exclusivamente a alma, ressalvando-se, esclareça-se, os castigos vincados em sanções morais. Mesmo estas sanções têm relação causal com aspectos físicos, ou materiais, podendo levar o acusado, em certas circunstâncias, a sofrimentos grandes (depressões, perda da sanidade mental, etc). É lembrar, tocante à particularidade, o político japonês que, em plenário, deu um tiro dentro da própria boca, ao ser acusado de desonestidade.

         Examine-se perfunctoriamente a ação do jogador colombiano. Objetivamente, interpretada sua atividade, ele quis o resultado ou, no mínimo, assumiu o risco de produzi-lo, dirigindo uma parte de seu corpo (o joelho) contra região delicada do arcabouço do opositor. A consequência, conhece-a o mundo inteiro, foi séria. O jogador diz que não quis produzir aquele evento, incrustando-se a movimentação em reflexos automáticos estimulados durante a refrega.  A ocorrência, no fim das contas, não pode ficar perdida no espaço, porque a sede natural de seu exame é, sempre, um procedimento escrito, ou seja, o processo. Dividir-se-ia a apuração em duas alternativas: a) – o denominado o campo administrativo-disciplinar; b) – a ação penal, valendo dizer que na hipótese de lesão grave a verificação é sempre encartada na ação pública incondicionada.

         Já se percebe a sofisticação do assunto, porque a apuração pela FIFA não serve de prejudicial à atividade persecutória do Ministério Público. Enfim, não é circunstância impeditiva da apuração de hipotético comportamento criminal. Aliás, por muito menos que isso já se instaurou inquérito policial ou mesmo um malsinado PIC, não havendo, na oportunidade sob exame, impedimento a tanto. Resta dizer que o Direito Penal tem, relacionando-se a infrações graves, o caráter de fatalidade. Desperta obrigatoriamente da zona cinzenta em que se põe, como severo fantasma, ao lado da convivência humana. O fato de ter havido ferimento em jogo de futebol não pode ser politicamente tratado, de acordo com as conveniências de momento. Aconteceu. Apure-se. O agressor é estrangeiro, mas isso também não é obstáculo à investigação. Relembre-se, embora sendo, agora, lugar comum, a mordida que Luis Suárez deu no ombro de Giorgio Chiellini: o resultado foi, no campo disciplinar, uma pena muito severa, mesmo em se cuidando de lesão que  os juristas do Brasil velho, principalmenteem Minas Gerais, chamavam de “roncha”,  isto é, assemelhada a um chupão ou até incitação romântica, realçando-se que a vítima, ali, não era nenhuma “Dama das Camélias”. Relativamente a Neymar, o rapaz é forte, mas não o suficiente para resistir àquele golpe cruel. Diga o Ministério Público. Qualquer promotor de justiça tem, segundo doutrina avançada na instituição, atribuições para estimular a perseguição. O Brasil exibe, no mínimo, cento e noventa milhões de testemunhas. Aqui, omissão é desculpa injustificável.

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