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Avó da Plaza de Mayo encontra neto sumido

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Em 1984 o Brasil começava a despertar para a abertura política, sob o governo João Figueiredo. João era muito agressivo. Agrediu jornalista durante uma solenidade, mas era menos mau. Ao mesmo tempo, ou pouco antes, a ditadura arrefecera na Argentina, elegendo-se Raúl Alfonsín. Este, embora contribuindo para o restabelecimento dos direitos políticos, obstou a perseguição a múltiplos torturadores, levando a efeito legislação admitindo a prescrição antecipada de crimes praticados naquela época. Não vale a pena o esmiuçamento do período, pois não é o objetivo da crônica. Basta dizer que “Las Madres de Plaza de Mayo”, lideradas por Hebe Bonafini, queriam saber o que havia acontecido a filhos e netos desaparecidos, uns torturados e mortos pelo regime, outros adotados ilicitamente por famílias de militares ou terceiros envolvidos na ditadura. Daí, entendi que o Brasil também precisava daquilo. Convenci José Eduardo Loureiro, presidente da Secção de São Paulo da Ordem dos Advogados, a trazer Bonafini ao nosso país, embora, aqui, não houvesse tranquilidade suficiente a tanto. Loureiro era um “mão de vaca”. Guardava os dinheiros dos advogados como se fosse um Cérbero, contando os tostões, mas tinha visão abrangente das necessidades do povo. Disse apenas: “- Paulo Sérgio, você ainda me põe na cadeia” e mandou buscar “La Madre”. Prova disso é a foto abaixo, Bonafini vestida conforme a tradição das mulheres revolucionárias, eu e Dyonne Stamato Leite Fernandes. “La Madre” trazia o Pañuelo na cabeça, símbolo da insurreição. Falou para os advogados, para os jovens e recusou um jantar com o Governo do Estado. Queria estar com os meninos. Deu a Loureiro aquele lenço, guardado com muito ciúme pelo presidente. Deve estar com alguém da família. Hebe voltou à Argentina levando na bagagem uma boa centena de exemplares de vinil contendo música que fiz para as “Madres”, gravada na madrugada, no período autoritário brasileiro, clandestinamente, em estúdio pertencente à Rádio Capital. Usei meninos bolivianos, fugidos de lá, mantidos por mim num apartamento em São Paulo. Cantavam bem, mas o solista, dono de voz potente, só alcançava o verso final estimulado por uma boa dose de “51”. De tentativa em tentativa, tomava todas e desmaiava. Daí “Las Locas de Plaza de Mayo” foi inteira cantada por mim. Há na Argentina, em poder das “Avós”, um ou outro exemplar. O resto se perdeu.

Hebe Bonafini cumpriu muito bem seu papel. Envelheceu. Eu também. José Eduardo Loureiro, dos melhores presidentes que a Ordem dos Advogados teve, já se foi. De vez em quando me lembro dele e de “Hebe Bonafini”, principalmente hoje, em que a presidente do movimento “Avós da praça de maio” anuncia ter localizado seu neto, com trinta e cinco anos de idade, filho de mãe e pai dilacerados pelo regime autoritário argentino. Aquilo se enlaça num estribilho da canção que fiz: “- Contemplam caladas, sofridas, perdidas, o templo rosado plantado na praça. “Las Locas de Mayo”, carpindo, dardejam o sopro dos filhos sumidos, elos partidos nas sombras do nada. É plena sandice buscar, implorar, a volta dos idos perpétuos”.

Já se vê que Hebe, as “Avós”, o cronista e uns outros não se perdem nas brumas do passado. No mínimo, restam uma melodia, nós que somos testemunhas e os descendentes descobertos pelo DNA. Quem tiver interesse, clique aqui. Ouve a música inteira.

 

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