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A violoncelista

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer

A violoncelista

          Li pouco de Érico Veríssimo. Ficaram na memória uns escritos sobre “O tempo e o vento”, “Um certo Capitão Rodrigo”, o conflito entre Bento Amaral e Rodrigo Cambará, Ana Terra e alguma coisa heróica a mais. Sempre que penso na heroína me vem à cabeça Glória Pires, com aquele seu jeitão meio índio, parecida com minha filha Geórgia, antes penalista citada em rodapés, hoje veterinária, descobrindo que gosta mais dos bichos. Érico, segundo lembro, era diplomata. Deixou filho, igualmente com talento de escritor, Luís Fernando Veríssimo, a quem leio de vez em quando, não por apreciá-lo menos, mas por escrever no “Estadão”, vetusto jornal com quem tenho uma briga de “Davi e Golias”. Na verdade, mandei alguma coisa àquele órgão de imprensa anos atrás. Alguém respondeu: “- Paulo, não vamos publicar seu artigo”. Aquilo me surpreendeu, pois o diário me dera, alhures, quase uma página inteira num debate que tive com Ada Grinover (eu litiguei com ela, embora a respeite muito, mas a processualista talvez nem saiba do conflito).

         Volte-se a pai e filho. Luís Fernando escreveu, num livro recente, crônica das mais maravilhosas que já folheei. Era história de uma louca, internada num hospício. Tinha um quarteto imaginário, mas acentuava que tocava sempre seu violoncelo. Os outros, sim, fingiam tocar.

         Aquele escrito é supinamente metafórico, pois pode significar qualquer assunto, aplicando-se a infinidade de hipóteses. Por exemplo, o Direito Penal e o Processo Penal brasileiros, mais respeitadíssimos juristas disputando, aqui e ali, teorias antigas e modernas em profusão. Confesso que já fui obcecado por aquilo, devorando o que me aparecia à frente em bibliografia espanhola, francesa, brasileira e até italiana (não gostava do inglês).

         Dentro do contexto, sem perda da unidade lógica de reflexão aparentemente sofisticada, digo que ao ler, ainda hoje, robustas preleções sobre dogmática criminal, sinto, em paralelismo imediato, o cheiro podre das cadeias brasileiras, sem exceção dos centros de detenção provisória paulistas. Aquilo rescende a batata cozida ou azedos condimentos outros. Advogados são proibidos de conversar com seus clientes em lugar ao menos civilizado, falando entre grades e amedrontados com a curiosidade de vigilantes. Mulheres, em visita a companheiros, maridos, filhos, pais ou irmãos, agacham-se em posição simiesca, como se fossem parir invólucros de drogas, embora haja recentemente lei estadual, ainda sem regulamentação, proibindo tal comportamento dos e das agentes. Em suma, muitos confrades, todos cultos e arejados, se comportam como a violoncelista de Luís Fernando Veríssimo: tocam um violoncelo imaginário, fingindo que os outros são ficcionistas. Em síntese, uma fabulação em que a realidade é a sujeira, a promiscuidade, a perda de mínimos princípios éticos atinentes ao tratamento a ser outorgado aos reclusos. No imaginário, sobram os violoncelistas malucos. Que coisa terrível! Ponto Final.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e quatro anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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