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Cemitério de Pets – Não coma leitões no natal

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Às vezes, nas proximidades das festas natalinas, o cronista se lembra do noviciado na advocacia criminal, cinquenta anos atrás. Praticava-se o escambo, ou troca. Tirava-se o cliente da cadeia, frequentemente gente pobre. Vinha uma dúzia de ovos caipira, uma toalha de crochê trançada a mão e chegava também um aperto de manopla calejada do pai de algum rapazelho preso por bobagem qualquer. Houve noite, entretanto, a não se apagar da memória: os honorários, na véspera do 25 de dezembro, se representaram por leitãozinho rosado, vivo e grunhindo, encolhido dentro de engradado apertado. As crianças, postas em alerta pela ceia natalina a surgir adiante, já começavam a chorar de dó. Em suma, o bichinho foi levado ao sítio de um amigo, sob promessa de sobrevivência e bons cuidados. O leitão ficou enorme. Era visitado. Diziam os meninos que o bicho os reconhecia e abanava o rabo quando os donos chegavam.

Passados muitos anos, o cronista se interessou por neurologia em geral e ciência do pensamento. Leu em algum lugar que os cães, principalmente os domésticos, têm a chamada “consciência de si”, antes privativa dos humanos. Há que insista nisso. Enfim, cachorros (e gatos?), hoje, são família. Há, aliás, catador de papéis estacionando sob um telhado na avenida Paulista, dito morador de rua, dormindo sossegadamente enquanto protegido por vira- latas muito simpático. Aquele segurança não permite grande aproximação dos transeuntes. O dono está descansando. É quanto basta…

Dito isso, passe-se adiante: tramita projeto na assembleia legislativa paulista visando proibir a produção e a comercialização de “foie gras”, mais artigos de vestuário feitos com pele de animal no âmbito do Estado. Quais animais? O projeto não exemplifica. Ainda no âmbito da legislação estadual, já se cuidou – e se cuida – de pretensões correlatas.

Tocante ao “foie gras”, há muito “chef”, em São Paulo e municípios providos de bons restaurantes, protestando veementemente contra a censura em tramitação. Tocante ao cronista, nunca se preocupou muito em saber as particularidades ligadas a tal alimento, até porque a comida, qualquer que seja, sempre foi examinada como combustível incidental, destinado, então sim, a permitir a sobrevivência. Uma necessidade, nunca uma guloseima. Faz parte de uma forma de estar no mundo. Se possível, não se teria corpo. Este, para  o escriba, é um invólucro a ser mantido atuante porque, sem ele, o cérebro não funciona. Existe, entretanto, quem pense diferente. O patê, para os últimos, é espécie de ambrosia. Forçado pela atualidade das discussões concernentes ao produto, este escrivinhador ficou sabendo que a substância é formada com fígado do ganso (pato), forçando-se a engorda e o aumento do órgão em 7 vezes ou mais. Segundo projeto proibitivo, 16 dias antes de se matar a ave instala-se funil comprido pelo pescoço abaixo dos bichos. Intrometem-se cereais no corpo do torturado. Chegado o 12º dia, o processo é repetido de 3 em 3 horas. No fim das contas, é tortura. As discussões respeitantes ao tema estão começando a infernar as faculdades de medicina e de veterinária, repercutindo, inclusive, nos corredores da Universidade de São Paulo. Existem, lá dentro, grupos de professores renitentes enquanto consideram adequada a experiência em animais vivos. Outros, inclusive grande parte dos alunos, sugerem e brigam por métodos alternativos, sabendo-se que um bom número de experimentações é factível por simulações em computador, podendo-se também recorrer a vídeos mantidos em profusão.

Não se há de chegar ao exagero de proibição a que se use o couro de gado vacum para a fabricação de casacos ou sapatos, na medida em que a pele de tais animais é residual. A utilização primeira é de carne. Por tais razões, nós humanos ainda temos restolhos dos caninos, primitivamente servindo à dilaceração dos corpos, ressalvados, para alguns crentes, os homens vampiros ou mordentes,  fazendo a angústia daqueles sujeitos a pesadelos. Dentro de tal contexto, há infinidade de animais servindo principalmente ao degustamento, sem exceção de insetos e afins. Dizem alguns, pondo-se entre grandes cozinheiros brasileiros, que as formigas vermelhas do amazonas, aquelas enormes autoras de guerras de conquista e escravização das pupas para pô-las a serviço da rainha, constituem saborosíssimo manjar. Nem se comente a série grande de bichos consumidos na China. Acentua-se que naquela nação tudo que se move é devorável (o que não se move também).  Assim, parece fundamental a distinção entre “matar para comer” e “preservar para matar depois”, sem o requisito da necessidade. A propósito, houve eminente pintor e gravurista brasileiro a proibir, enquanto envelhecia, a destruição de uma só vida ao redor, sem exceção dos viventes mais originais (lesmas, caramujos e quejandos).

Parta-se para extravagância sem par. O próprio corpo humano é reduto de milhões e milhões de universos, uns sobrevivendo aos outros e até necessários, constantemente, à sobrevivência de quem os porta (ou suporta). Parece, no fim das contas, que a rebeldia tem estrutura na destinação básica do animal a ser morto, ou seja:  serve ou não à sobrevivência da raça humana. Assim, engordar-se um “cairina moschata momelanotus” durante muitos dias enfiando-se tubo pela garganta do bicho para comê-lo depois, rescende a sadismo inominável, não chegando sequer a aproximação com os nossos silvícolas canibais (v. “Como era gostoso o meu francês”). Ali, no meio dos índios, o prisioneiro era muito bem alimentado, sim, mas não sendo privado, sequer, do congresso sexual no entremeio. Já se percebe série grande de diferenças entre uns e outros…

Vem o prólogo a pelo enquanto tramitando na Câmara dos Deputados o projeto de lei 684/11, proibindo o uso de peles de animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos em eventos de moda no Brasil. Acrescenta-se, além disso, artigo à lei que pune crimes ambientais (lei 9.605/98). Chame-se atenção, também, para aprovação à lei estadual 15.566/2014, que proíbe a criação ou manutenção de animais para extração de peles no Estado de São Paulo. Admite-se criação ou manutenção de chinchilas da espécie chinchila lanígera na qualidade de animais de estimação. Há, ainda no Estado de São Paulo, por fim, a lei 15.316, de 23 de janeiro de 2014, proibindo a utilização de animais para desenvolvimento, experimento e teste de produtos cosméticos e de higiene pessoal, perfumes e seus componentes. As sanções são pecuniárias, acompanhadas, conforme a reincidência, da suspensão temporária ou definitiva de alvará de empresas que deem a tais atividades. Estende-se a sanção a pessoas físicas. Houve literato muito importante, alhures, ironizando sobre a hipótese de gostarem as lagostas de serem cozidas vivas antes de degustadas pelos comensais em restaurantes famosos. Daí o fato de ativistas as terem subtraído de aquário, lançando-as ao mar em sequência. Evidentemente, deixando-se de lado eventual incompatibilidade entre o crustáceo e a salinidade da água encontrada em substituição ao original, é muito pior morrer cozida que inanimada por alergia substancial. Na primeira hipótese, há uma certeza. Na segunda, uma probabilidade. Se e quando as lagostas pudessem optar, não gostariam de ser cozidas vivas. Aliás, o livro “Fabulações de um velho criminalista” termina assim: caranguejos desesperados tentando fugir do caldeirão fervente. No fim as contas, tudo parece funcionar a semelhança do que ainda se faz no reino dos humanos com os próprios. Há contradição marcante: o bicho mata para comer. Quanto ao homem, tortura antes de matar.

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