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Procurador-Geral da República tira a toga e expõe o corpo

Até o fim da primeira metade do século XX, os juízes brasileiros eram silentes, inexpugnáveis e impenetráveis. Conheci Desembargador, aliás, de santa memória, que transportava seus processos sob as axilas, conduzindo-os com imensa discrição à residência. Morava em casa geminada. Poucos sabiam qual sua atividade. Era um homem respeitável sob todos os aspectos. Compunha-se, no dizer de muito lido escritor português, “com um sorriso contido e austero, um contentamento vestido a rigor”. Protegia-o a toga, apenas, pois nem carro oficial ele usava no trajeto entre o Tribunal e a cidade praiana onde vivia. Suas decisões se perderam nos velhos repositórios de jurisprudência. É lembrado às vezes, porque, embora discreto, virou nome de rua.

O tempo passou. Findou-se o século. Outro se iniciou, já então, com a modernidade trazida pela “internet”, com seus “blogs”, entrevistas ao vivo e milhões de celulares funcionando sobre as mesas de restaurantes. A bola da vez é a chamada transparência. Levada ao extremo, permite a intromissão nos mais recônditos segredos do ser humano, tudo facilitado, inclusive, pelo despudorado arcabouço gerado pelo Poder Público, manipulando-se os contatos antes deixados em segredo. Coerentemente, o desnudamento de comunicações entre particulares se estende também, por liberação e analogia, à manifestação de vontade de personagens antes escondidas atrás dos reposteiros a mitificá-las. Hoje, com certeza, o magistrado já não mais se nulifica na penumbra do gabinete, ou na impessoalidade das decisões. O juiz sai à rua, deixa a caneta em casa, debate, agride, ataca mesmo e põe à coletividade a dimensão, o tamanho, a contextura, por fim, do poder que representa. Aqui, o Ministro da Suprema Corte tem voz, vez e nome enquanto se põe no palco aberto do noticiário ao vivo das sessões plenárias. Acontece o mesmo a tribunais intermediários. Por via de consequência, setores outros da autoridade, nestes pontificando o Ministério Público, agora denominado “magistratura em pé”, aparece também, munindo-se, na atualidade, com todo o arsenal cuja disponibilidade advém, inclusive, da benevolência que a magistratura, levada, quiçá, por um quase estado de necessidade, dispôs para utilização dos acusadores públicos, nisto incluída a famigerada interceptação telefônica, antes constituída por um pecado mortal de respeitadíssimos processualistas penais brasileiros, caracterizando, na modernidade, uma teia soturna de violência à intimidade, discrição, tranquilidade e sossego de toda a nação, na medida em que não respeita mais, sequer, o segredo de comunicações entre os superiores órgãos da República. Nessa medida, o conjunto estimula, autoriza, aproxima, entusiasma, sugere e até enlouquece, de quando em vez, um ou outro preposto colocado em porções inferiores, médias ou superiores do relacionamento entre o poder e a comunidade, o mandonista e o obediente, o castelão e o camponês, enfim, porque não se afigura mais suficiente, à maneira do que acontecia no período medieval, a afixação, no portal das igrejas, do édito posto a viger pelo senhor feudal. Não se cuida, veja-se bem, do despautério de quem prenunciou tempestade tardia. Não, o fenômeno do esgarçamento da discrição com que a autoridade precisa se comportar está adquirindo perspectiva extravagantemente curiosa, porque o portador da autoridade, fiado na armadura a protegê-lo, deixa a prudência em domicílio, potencializa a comunicação, ataca, agride, bate, açoita, esmurra, avilta, humilha, difama, injuria, calunia, abre as manoplas e dá lições à comunidade, à coletividade, à cidadania enfim, firmado, isto é muito importante, na inexpugnabilidade impeditiva de retorno, porque a manifestação do senhor de engenho funciona à maneira de digiti duri, inadmitindo a retorção. Não se limita o agressor ao debate. Ou melhor, parte para a discussão, numa combatividade de caráter plúrimo, encontrando lugar bastante na imprensa a acolitar seus argumentos. Isso aconteceu no domingo, dia 21 deste mês de fevereiro, quando o Procurador-Geral da República, no gabinete acobertado pelas envidraçadas janelas da redonda torre onde executa suas atribuições, parte para a afirmativa de que a impunidade, no Brasil, está a terminar, fiado, diga-se, em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, severa, é certo, mas ainda posta em discussão no ir-e-vir do conflito judiciário. Não se discute o fato de precisar o país de uma sorte de remoralização na criminalidade de alto coturno, mas quando o preposto do rei abre a armadura e expõe o flanco, deve saber que pode haver ferimento da volta, pois o fato de ser Procurador-Geral da República não o coloca a salvo da censura de alguém, ou de alguns, ou de um só que seja, mas o moço precisa ouvir, precisa aborrecer-se também, precisa prestar-se a conscientizar os defeitos que tem, não aqueles ligados ao deputado malsão, ao senador posto sob suspeito, ou à Presidente exposta a visitação censória, ou ao intermediário a sangrar os cofres da empresa petroleira, mas o preto, o pobre, a puta mesmo, obrigada a abrir as pernas agachada numa carceragem vagabunda, quando precisa, quer ou quando é obrigada a visitar o filho, amante, marido, o pai, enfim, abandonados pela própria Justiça sequer começaram a cumprir a pena imposta. O Procurador-Geral da República, diga-se de passagem, chega a trair-se quando usa um pequeno parágrafo do texto para sugerir maior atenção aos presídios brasileiros. Quem sabe, havia um sinal vermelho, ou mancha escarlate, na toga a usar enquanto manipula a plenitude da chibata, dirigindo-a à nação. Em tais circunstâncias, a balança tem, nos dois pratos, um desequilíbrio enorme: numa extremidade, milhares e milhares de réus quase indefesos, se plenamente indefesos não estiverem. Na outra extremidade, uma porção de delinquentes diferenciados, sim, merecedores, talvez, de punição severa, se criminosos forem. No outro extremo, eminentíssimo Procurador-Geral da República, Vossa Excelência há de conviver, nos sonhos ou na vigília, com a vilania praticada contra uma multidão de infelizes que não conseguem, sequer, ajoelhar-se junto ao tablado em que Vossa Excelência exerce o direito de punir. Dentro de tal parâmetro, o Brasil tem, sim, imprescindibilidade de reprimir a corrupção gigantesca a sugar a vitalidade das instituições, mas o Procurador-Geral vai conviver, também, com a podridão dos presídios e cadeias que a nação tem. Seria muito útil, eminente Procurador-Geral da República, que Vossa Excelência deixasse por algumas horas os portais do Supremo Tribunal Federal e fizesse uma visita às nossas carceragens. Valeria a pena deixar as alturas da degustação do néctar e da ambrosia, mastigando um pouco da batata podre e dos restos alimentares servidos no sistema carcerário nacional. Evidentemente, o gosto é ruim, mas, por ser ruim e indigesto, evita a saciedade, provocando uma reação qualquer meritória. Já se vê, cultíssimo Procurador-Geral da República, que quem diz o que quer ouve o que não quer.

Em tempo: o jornal O Estado de São Paulo não me publica. Houve alguma coisa, lá atrás, a azedar a comunicação. Fique-se por aqui.

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