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Coisa julgada e problemas do Judiciário

Luiz Carlos de Arruda

A tormentosa questão da coisa julgada assola o mundo jurídico quando se trata de efetividade do processo. A coisa julgada pode ofender, observados seus princípios, a certeza ou incerteza dos fatos na realidade final, os princípios da Constituição e os sagrados dogmas da justiça.

Assim, pode-se afirmar que há coisa julgada inconstitucional, coisa julgada nula e coisa julgada fraudulenta. Nesta última hipótese existe a concorrência, a coadjuvância do Judiciário, por fas ou nec fas, para o aperfeiçoamento da fraude.

TEREZA ARRUDA ALVIM WAMBIER e JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA, na obra “O dogma da coisa julgada – Hipóteses de relativização”, ed. RT, 2003, página 11, trazem à baila lição de JOSÉ LUIZ VASQUEZ SOTELO, quando este afirma:

“En una época llena de dogmas y propensa a los mitos, el dogma de la cosa juzgada, quedaba rodeada de ‘santidad’, y se tomaba técnicamente como ‘presunción de verdad’, sólo destructible el los contados casos abiertos a la revisión. La ‘santidad de la cosa juzgada’ venia a ser la religión de la justicia humana. Pero el mismo GUASP, al analizar el fundamento de la cosa juzgada, explicaba y dejó escrito después que ‘el valor de justicia permanece indiferente a la cosa juzgada; incluso en muchas veces le es hostil’ y entra en conflicto con ella, porque al valor de justicia repugna que una decisión judicial permanezca inmutable aunque se patentice su discrepancia con el orden jurídico substancial. En cambio, ‘el valor de la seguridad jurídica postula la existencia de cosa juzgada, por cuanto sin ella las situaciones jurídicas materiales estarían en trace de perpetua revisión’. Y concluía que ‘la cosa juzgada es una de tantas concesiones que la justicia hace a la seguridad jurídica para la mejor obtención del bien común (JAIME GUASP, Derecho Procesal Civil, 1ª ed., 1956, p.595/598).

En definitiva, cuando se plantea la ‘flexibilización’ de la cosa juzgada o sus nuevos ‘límites’ lo que se está propugnando es un nuevo marco para las concesiones que la justicia debe hacer a la seguridad, ahora con un predominio de las exigencias de justicia para una paz social más justa”.

Está aí, manifesto o conflito entre segurança e certeza ainda quando se persiga, juntamente com esse binômio, o princípio da justa sentença.

A questão do problema é reconhecida por todos os que laboram na área do direito e que não se deixam levar pelo suposto “utilitarismo” dos conceitos antigos que faziam da coisa julgada um dogma, ainda que contrário ao sagrado princípio da Justiça. Esse reconhecimento “funciona” como o olhar apriorístico dos estudiosos. A dificuldade está nos expedientes possíveis para a solução do problema. É a visão a posteriori dos operadores do direito, que traz a maior dificuldade para o caso.

Analisa-se a seguir, os conceitos dos temas que envolvem o problema da coisa julgada e das consequências no processo.

  1. Coisa Julgada – Conceito:

DE PLÁCITO E SILVA, em seu celebérrimo vocabulário, agora atualizado por NAGIB SLAIBI FILHO e GLAUCIA CARVALHO, 26ª Ed., 2005, Forense, v.bte. diz que coisa julgada ou caso julgado é entendido como:

“A sentença, que se tendo tornado irretratável, por não haver contra ela, mais qualquer recurso, firmou o direito de um dos litigantes para não admitir sobre a dissidência anterior qualquer outra oposição por parte do contendor vencido, ou de outrem que se sub-rogue em suas pretensões improcedentes. Revela, pois, o pressuposto da verdade firmada ou afirmada pelo decisório judicial, que se mostra irrevogável ou irretratável, segundo a regra: res judicata pro veritate habetur, desse modo, a coisa julgada pressupõe o julgamento irretratável de uma relação jurídica anteriormente controvertida. Nesta razão a autoridade da res judicata, desde que já foi reconhecida a verdade, a justiça e a certeza a respeito da controvérsia, em virtude da sentença dada, que venha a mesma questão a ser ventilada, tentando destruir a soberania da sentença, proferida anteriormente, e considerada irretratável, por ter passada em julgado. Domina, assim, na evidência da coisa julgada, a existência de uma relação jurídica, anteriormente julgada, sob fundamentos de determinada razão de pedir, ou seja, a igualdade do pedido e a igualdade da causa de pedir, em vista do que se verifique que a controvérsia anterior surgida com idênticos fundamentos, foi julgada para contrapor-se a qualquer semelhante divergência futura. Nas duas identidades, de pedido e de causa a pedir, integram-se os requisitos da identidade jurídica da relação julgada e da identidade da qualidade jurídica da pessoa, que a venha pleitear, procurando quebrantar o decisório, que já se tornou inatacável pela autoridade da coisa julgada.”

A questão da coisa julgada traz à baila imediatamente a diferença entre as sentenças justas e as injustas. Assim, JOSÉ IGNACIO BOTELLO DE MESQUITA em sua obra “Coisa Julgada”, ed. Forense, 2004, pág. 93, a propósito da questão, registra curiosa observação técnica. A saber:

“A tese, ao fazer diferença entre as sentenças justas e as injustas, para conceder àqueles e negar a estas autoridades da coisa julgada, descreve, na verdade, um movimento retrógrado de volta ao sistema das Ordenações Afonsinas, de 1.446, que distinguia entre a sentença dada contra ‘direito expresso’ e a proferida contra ‘direito da parte’.”

Em nossos dias, discute-se com acirrada veemência a questão do processo célere e justo. Alguns entendem que a celeridade não pode comprometer a justiça da sentença. Mas, essa justiça, que implica também em segurança jurídica, não tem o condão de dispensar todas as regras do devido processo legal, ampla defesa e dos meios a ela inerentes, inclusive os recursos cabíveis e admissíveis hoje perante a vigente Constituição Federal.

Esquipática figura nasce, aqui, quando se observa que há um movimento, no Poder Judiciário, no sentido de reduzir, ao máximo, a existência de recursos, especialmente aqueles que desafiam as decisões interlocutórias. Pretendem algumas vivandeiras de fórum (plagiando a CASTELO BRANCO), que não haja recurso durante a fase inicial, a instrutória e a fase probatória do processo, eis que querem (os que pretendem limitar os trabalhos dos juízes e do foro) que se faça a arguição de toda a matéria possível de recurso ao seu final, argüindo-se o que for possível. O efeito do recurso retroagirá ao início do processo.

Dizem eles que, nesta hipótese, não haverá preclusão das matérias arguidas, tanto da defesa quanto dos demais intervenientes no processo. Esquecem-se, contudo, esses novidadeiros do processo, que a simples existência do procedimento constitui um prejuízo e um gravame para o Réu. A insegurança aumenta se não for justo ou cabível a interposição da ação contra o Réu, ou ainda, se não estejam preenchidas as condições da ação, os pressupostos objetivos e subjetivos do processo. Os que assim raciocinam, terão perdido toda a sua concepção e conceito técnico para aplicação do direito. A verificação, somente ao final da existência ou inexistência de pressupostos subjetivos ou objetivos, para formação e desenvolvimento regular do processo, será no mínimo, confessar a incongruência do sistema.

Mudar o código não significa destruir o código. Nem vale aqui a alegação do eterno “Ceci tuera cela”. Temos processo há mais de 2.000 anos. A Lei das XII Tábuas ou da Duodecim tabularum foi editada nos primórdios do Direito Romano, sendo, as “Tábuas” expostas em pontos estratégicos da cidade eterna, gravadas em bronze. Segundo TITO LÍVIO, em sua “História de Roma, ab urbe condita libri”, 1º V., ed. Paumape, fls. 277, ao tempo em que se discutia a má conduta de APIO CLAUDIO, tribuno dos patrícios na luta com a plebe romana, “antes de saírem da cidade, os cônsules apresentaram ao povo as leis decenvirais a que chamamos de ‘Doze Tábuas’, (…)”.

Existem conceitos ali estabelecidos que, até hoje, não podem ser mudados.

Em nossos dias, observa-se uma efervescência nas questões jurídicas como se estas fossem a tábua de salvação para uma sociedade que se modifica rapidamente, tanto para o bem quanto para o mal. Só para que se comprove a afirmativa, há de ser mencionado o caso da “PEC” (Proposta de Emenda à Constituição) apresentada pelo Ministro do STF, Dr. CÉSAR PELUSO.

Sua Excelência, o Ministro, tenta responsabilizar a situação atual, de má prestação jurisdicional, ao fato de um suposto volume de recursos. Governo e mídia, despreparados, se especializaram em afirmar que “a enorme quantidade de recursos que chega diariamente ao Judiciário Brasileiro é responsável pela morosidade da justiça no país”.

Todavia, entre os doutos, existem aqueles que se manifestam, isentos de qualquer outro ânimo, senão o da excelência da prestação jurisdicional, afirmando em contraposição, que: “No entanto, para especialistas, o problema não está no recurso em si, mas nas ilegalidades cometidas por Promotores e Juízes que tornam os recursos necessários. Para o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, do Superior Tribunal de Justiça, os recursos são formas de garantir a presunção da inocência aos Réus, princípio básico do direito brasileiro. ‘Hoje quem fala mal de recurso é aplaudido, mas a verdade é que eles existem para combater os abusos. Não são os recursos que devem ser diminuídos, e sim as ilegalidades’”.[1]

Ainda bem que existem pessoas com elevado descortino na compreensão da prestação jurisdicional. Não fora isso, o campo estaria propício para que medrasse a tirania do Judiciário.

Infelizmente, é o despreparo do Judiciário e de seus membros que, na verdade, causa todo o dano à prestação jurisdicional. Ora, é um Juiz do primeiro grau que desrespeita todas as regras do procedimento e cria ele uma norma inaplicável à espécie do problema jurídico que se encontra em suas mãos. Ora, por outro lado, é o magistrado de 1º grau, que defere, por exemplo, Recuperação Judicial para sociedade simples (não empresária), tal como a Cooperativa, trazendo imensa incerteza jurídica para o direito e para as partes. Isto se deve porque as decisões de juízes do 1º grau já não são mais exaradas pelos Magistrados, mas por assessores que, por vezes, nada têm a ver com o estudo da matéria de direito, nem têm formação jurídica completa ou própria para o mister que desempenham.

Quando o mal mais se agrava, se observa que, o problema é tratado com absurda hipocrisia. O foro está coalhado de louvaminheiros, hipócritas, puxa-sacos e outros seres dessas espécies. Afirmam não o que precisa ser afirmado, mas, sim, o que os ouvidos das Autoridades querem ouvir.

Os tribunais, por sua vez, preocupados apenas com sua autonomia econômico-financeira, também não se sensibilizam com a carência da boa prestação jurisdicional. Ser um bom juiz hoje, de boa formação técnica, de conhecimento geral amplo, de formação filosófica ideal, de conduta ética irrepreensível, é, em verdade, uma exceção. Por vezes, os magistrados se comportam como se fossem verdadeiros Deuses, e não observam seus pés de barro, uma vez que, estão tão somente a admirar seus próprios umbigos[2].

YVES GANDRA DA SILVA MARTINS, esse estudioso do Direito Tributário, segundo notícia da web em artigo de GABRIELA ROCHA, MARIANA GHIRELO e MARINA ITO “fez questão de incluir, em sua palestra sobre controle concentrado de inconstitucionalidade, no Instituto dos Advogados Brasileiros, sua constatação a respeito da PEC. ‘A justiça tem que ser rápida e justa. Mas prefiro uma justiça menos rápida a uma rapidez sem justiça’”.

O advogado mineiro ARISTÓTELES ATHENIENSE, de acordo com o mesmo site, afirmou “que não é a primeira vez que há uma iniciativa como a da PEC dos recursos. No passado tudo o que havia de ruim no funcionamento do judiciário se devia aos recursos.” O advogado ARISTÓTELES, exorta a que a advocacia “resista às modificações sobre pena de sacrificar a própria defesa e tornar letra morta tal princípio constitucional.”

Para aqueles que laboram no dia a dia do foro, tem sido fácil conferir que, 90% da procrastinação do trâmite processual se deve ao juiz e a situação da prestação jurisdicional, onde os responsáveis não tem formação ideal para cumprir o objetivo a que se oferecem. Assim, recebendo o Juiz ou um assessor, em mãos, questão complexa, para a qual não se veem preparados, ou deixam de lado a questão ou darão a solução que o Tribunal Superior deverá reformar. Deve-se ainda agradecer, no estágio atual, o tremendo esforço dos Tribunais Estaduais, que têm, dentro do possível, tentado corrigir as impropriedades técnicas, os erros crassos, às vezes até grosseiros, nos casos que lhes vêm às mãos pelos recursos de agravo ou de apelação.

Já nem se diz do despreparo das secretarias judiciárias que, por falta de assistência, de pessoal, de material, etc… etc… não podem contribuir para uma melhor função da outorga da prestação jurisdicional. Existem nos fóruns dos corumbás brasileiros, juntada de petição a ser realizada, com mais de três meses de atraso. Dizem ser o normal, na atualidade…

Até pouco tempo os Cartórios Judiciais eram exercidos por particulares aos quais se delegava a função pública. O ganho desse Escrivão se fazia das custas e, óbvio, só ganhariam dinheiro os escrivães, se os processos fossem ultimados. Mas, a título de uma isonomia, de uma cidadania, de uma sei-lá-o-que, extinguiram o sistema misturando todos os prestadores de serviço no foro em saco de uma farinha só. Deu no que deu. Mas, ninguém se lembra da besteira que fizeram. Hoje já não há mais responsáveis pelos serviços, senão em função de uma suposta hierarquia funcional. Hierarquia esta que também “não funciona”.

Na conjuntura jurídica nacional, se alguma coisa boa ainda existe, para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, no cível, é o recurso do agravo de instrumento, e o de sentido estrito no penal. Não fossem esses dois recursos por certo a grande maioria das sentenças estariam coalhadas de erros com processos absolutamente nulos senão com coisas julgadas prenhes de fraudes.

Inúmeros são os fatores que devem convergir para a existência de um bom juiz. O primeiro é o preparo técnico, o conhecer a ciência do direito, não por vasos estanques, mas por sua globalidade; O segundo é o animus do trabalho; O terceiro é o desengano acerca das vaidades humana; O quarto é a consciência de que, ao laborar, o juiz, aplica um mínimo da soberania do Estado em seus atos; O quinto, por sua vez, é aquela compreensão da natureza humana, imprescindível naquele que julga seus semelhantes; O sexto é a consciência de sua humildade. Tudo se prende apenas a obrigação de prestar um bom serviço. Os poderes concedidos são em benefício da sociedade e não do portador deles; O sétimo, por certo, é a certeza de que por sua natureza humana, está sujeito ao erro de julgamento. Logo, a soberba não pode imperar; E finalmente, deve ter a consciência de que, seu labor concorre, coadjuva, o trabalho do Estado de conduzir o cidadão à sua máxima felicidade e ao desenvolvimento do ser humano.

Toda vez que se fala em coisa julgada fraudulenta ou das fraudes nelas contidas, vem à lembrança, miríades de exemplos acerca da falibilidade dos homens. Isso no mundo jurídico compõe o quadro dos erros judiciais. DOMINGO GIURIATI em seu “Los Errores Judiciales”, Ed. La España Moderna, traduzido por A. POSSADA, página 208, a respeito, escreveu:

“Combatir los errores de los magistrados, darse maña para descubrirlos, evitar los daños de las victimas: He ahí tres anillos de una cadena, que respectivamente se suponen y sostienen.

La trinidad parece sospechosa, y por eso ha sido combatida. Cada uno de los tres propósitos, a un cuando parezca extraño acabó por pasar por revolucionario. Y la razón es bien sencilla.

Mientras se trató solo de descargar las consecuencias de los desvaríos sobre los acusadores privados, las leyes no opusieron dificultad para abrir el templo de astrea en las tres empresas. Pero encuanto el dios Estado tomó en sus manos poderosas con la Justicia la Acusación, fundiendo en una las dos magistraturas, y merced à la confusión no se pudo ya impedir que, las leyes volvieron sobre sí mismas y esforzaronse en ocultar los errores judiciales, como si no los hubiera, disimulando los sufrimientos de las víctimas, cual si se tratase de fatalidades necesarias, obra del cielo.”

TEREZA ARRUDA ALVIM WAMBIER e JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA, em seu “O Dogma da Coisa Julgada”, RT, pág. 9, 2003, registram na apresentação de sua obra que:

“A problemática em torno da qual deve girar predominantemente este ensaio é recente e nasceu num contexto em que prevalece o entendimento no sentido de que o direito não se reduz à lei. Evidentemente, há padrões de conduta e de decibilidade (e se não os houvessem, não haveria direito!), mas esses padrões longe estão de se confundir com os textos do direito positivo.

Sabe-se que os padrões de conduta e os que o juiz deve levar em conta para decidir são estabelecidos com base no manejo de elementos constantes do sistema jurídico: direito posto, jurisprudência, doutrina, princípios jurídicos. Claro está que o reconhecimento dessa realidade e o conformismo social em relação a ela gera uma sensação de segurança muito mais difusa e rarefeita do que aquela que se tinha quando se entendia que as pautas de conduta e os padrões para as decisões judiciais se circunscreviam à letra da lei.

A segurança que hoje é gerada pelo direito nasce da circunstancia de que os padrões de conduta e de decisão, embora não mais se identifiquem com a letra da lei, só podem ser criados a partir da combinação de elementos dessa espécie de “repertório”, que é o sistema jurídico. Não podem aí ser incluídos elementos de fora do sistema ou desconhecidos.

Nesse sentido e nessa medida, o sistema do direito se “auto-legitima”: a doutrina se “valoriza” ou se impõe citando doutrina, antecedente, concomitante ou estrangeira; na jurisprudência, se citam precedentes; a lei, muito comumente, se altera, na esteira da jurisprudência e da doutrina e assim por diante. Esta idéia é bastante próxima à de autopoiese.

Portanto, as inovações, no direito, não se fazem de forma a surpreender toda a comunidade. Operam-se aos poucos, a partir do manejo de elementos do “repertório”, gerando soluções novas, a partir de dados preexistentes e às vezes tendo em conta novos elementos que terão passado a integrar o sistema. Mudanças bruscas, fora de toda de qualquer possibilidade de terem sido previstas, são contrárias ao direito, ainda que em si mesmas possam ser racionais”.

A ideia não é má. Todavia, os intérpretes do direito brasileiro, contudo, teriam que amoldar-se a essa circunstância. Aliás, o art. 1º do Novo CPCivil, que se pretende seja aprovado, menciona a hipótese de aplicação direta das normas constitucionais, ou o que é mais, dos princípios de direito. Vejamos:

“Art. 1º. O processo civil será ordenado, disciplinando e interpretado conforme os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.”

Isso se coaduna com a crescente mudança de visão das normas constitucionais. Daí surgiu o garantismo de FERRAJOLI e a teoria profligada por ERNST-WOLFGANG BÖCKENFÖRDE. Em um dos ensaios deste último, publicado sobre o título de “Escritos sobre Derechos Fundamentales”, Ed. Nomos Verlagsgeselischaft, pág. 17:

“Frente a esta particularidad de la Ley, la Constitución ES, según su conformación normativo-material, fragmentaria y fraccionada. Sus preceptos contienen en lo esencial – al lado de las regulaciones comparativamente detalladas en el ámbito de las competencias y en algunas cuestiones de organización – principios que requieren previamente del rellenado y de la concretización, para ser realizables en el sentido de una aplicación jurídica. Preceptos de programación final que sólo fijan el fin – a veces en si no susceptibles de una única interpretación – pero dejan abierta la forma, medio e intensidad de la realización; fórmulas lapidarias, que –a menudo heredadas de la tradición constitucional – se ponen para algo que no encuentra en su acepción literal ninguna expresión aproximada; fórmulas de compromiso que son precisamente expresión de la falta de acuerdo y que postergan de la decisión. (…) Esta particularidad de la Constitución hoy es reconocida ampliamente como un hecho, sin perjuicio de las diferentes consecuencias que de esto se derivan; cfr. por ejemplo GEIGER, Verfassungsentwicklung durch Verfassungsgerichtsbarkeit, 1965, p.4 y s; BÖCKENFÖRDE, Die Organisationsgewalt im bereich der Regierung, 1964, p.16 y s; SCHEUNER, en: >> VVDStRL << 22 (1965), p.61 y s; BADURA, voz: Verfassung en el >>Evang. Staatslexikon<<, 2ª edic. (1975) PP.2717 y ss; el mismo en: >>Festschrift f. Scheuner<<, 1973, PP.19 y ss; HESSE, Grundzüge des VerfassungsR der Bundesrepublick Deutschland, 8ª edic (1976), p. 11 y s.”

Abandona-se, com esse entendimento, a figura da Constituição Federal como conjunto de regras programáticas.

Desta maneira, apenas voltando ao exemplo anterior, um juiz que defere a pretexto de aplicação de analogia, processamento de Recuperação Judicial para uma Cooperativa, por certo, labora contra os elementos do repertório jurídico nacional. Realmente, havendo como há regra específica, pela qual, a Cooperativa, Sociedade Simples, não tem direito de postular Recuperação Judicial, nem está subordinada às regras da falência, não pode o juiz sobre o infeliz argumento de equiparação com as sociedades empresárias, deferir para as Cooperativas, Recuperação Judicial. Não pode porque, o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), dispõe que:

“Art. 4º - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”

Também o CPCivil, contém dispositivo, o do art. 126, que regula aplicação do método analógico pelo juiz. Dispõe o artigo que:

“Art. 126 – O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito.”

A analogia é aplicada apenas na hipótese da lei. Não pode o magistrado, sob o pretexto de que o dispositivo da lei não se amolde aos seus conceitos, criar regra nova, engendrar norma não existente ou contra legem, isto no cível, porque no penal a questão é facilitada por sua própria natureza.

É o caso mesmo do famoso Juiz Magnaud[3], polêmico que foi e permanece até nossos dias. A Profa. SILVIA MOTA, em artigo denominado “Método Analógico”[4], quanto a aplicação no Processo Penal, faz a seguinte anotação:

“No Direito Penal brasileiro não se aplica a analogia, salvo in bonam partem, para favorecer o réu, nunca para agravar-lhe a pena. A lei penal é isenta de lacunas, porque, conforme preceitua o art. 3º do Código Penal (CP): ‘Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.’ Dessa forma, toda conduta humana, que se pretenda criminosa, há de estar tipificada na lei penal. Poderá haver interpretação extensiva no direito penal, não analogia. Outro exemplo ocorre no âmbito do direito fiscal: suas leis são taxativas, porque o tributo é certo, nunca arbitrário. Os tributos são determinados exclusivamente pelo legislador, sem interferência do Executivo, não podendo este regulamentar sobre a matéria e nem ao Judiciário é permitido, ao ensejo de preencher espaços em branco da lei, utilizar a analogia para criar novos tributos”.

Realmente, não há analogia quando inexistente lacuna legal. Sobre o exemplo levantado, o art. 1.093 c/ com o 1.096 do CPCivil, declaram especificamente que a Sociedade Cooperativa é na realidade, Sociedade Simples e não Sociedade Empresária. A Lei de Falência e Recuperação Judicial por sua vez, em seus art. 1º e 2º, afirma que a Recuperação Judicial e a Falência cabem apenas aos empresários ou às sociedades empresárias. Não cabe Falência ou a Recuperação para as Sociedades Simples, e, portanto, para as Cooperativas. Então, a aplicação, sem qualquer critério, de raciocínio analógico, tipifica não interpretação legal, mas abuso de direito, pura tirania judicial.

A sentença que eventualmente transitar em julgado com fatos dessa natureza, são sentenças que carregam em si a coisa julgada fraudulenta. Não há confundir-se com a coisa julgada inconstitucional, porque aí, a questão tem outra face, inclusive, ao menos quanto à forma de argüição.

O Direito Brasileiro está em franca evolução. Devem ser respeitadas as normas legais. O não respeito a estas leva ao abuso, não se tratando mais de evolução, mas sim de revolução. Revolução ilegal.


[1] HTTP://www.conjur.br/2011-jun-09/nao-sao-recursos-diminuidos-ilegalidades-sim?i

[2] A exacerbada cultuação da própria pessoa pode levar ao transtorno de personalidade. Segundo a grande rede (Narcicismo – Wikipédia) e http://tride3.blogspot.com/2010/01/teste-de-narcisismo.html. Narcicistas existem “nos órgãos oficiais, entidades privadas, em associações de vária índole e serviços públicos de diversa ordem. São vulgarmente pessoas de nível intelectual abaixo da média convivendo com sérios problemas de inferioridade nas suas vidas familiar e profissional”.

[3] Carlos Maximiliano, comentando a chamada jurisprudência sentimental aplicada pelo Juiz Magnaud, observou: “imbuído de ideias humanitárias avançadas, o magistrado francês redigiu sentenças em estilo escorreito, lapidar, porém afastadas dos moldes comuns. Mostrava-se clemente e atencioso com os fracos e humildes, enérgico e severo com opulentos e poderosos. Nas suas mãos a lei variava segundo a classe, a mentalidade religiosa ou inclinações políticas das pessoas submetidas à sua jurisdição” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 9ª. ed., p. 83). E mais adiante, mostrando preocupação com tal posição, cita João Cruet, para quem “quando o magistrado se deixa guiar pelo sentimento, a lide degenera em loteria, ninguém sabe como cumprir a lei a coberto de condenações forenses” (op.cit., p. 83).

[4] www.silviamota.com.br/direito/artigos/metodoanalogico.htm

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