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O PORTÃO DO CEMITÉRIO

Roberto Delmanto

Meu pai Dante costumava dizer, figurativamente, que o advogado criminalista pode ir com o cliente até o portão do cemitério, mas não precisa entrar.

Certo jovem, em uma cidade turística do interior paulista, quando passava férias de fim de ano na companhia da namorada e de amigos, veio a suicidar-se com um tiro.

Embora o moço tivesse sérios problemas psicológicos, seus pais, pessoas muito ricas e de forte tradição judaica, não aceitavam a hipótese de suicídio. Assim como os católicos que, no passado, não rezavam missa de sétimo dia para os suicidas, os judeus costumavam enterrá-los com os caixões na vertical, junto ao muro do cemitério.

O infeliz rapaz, provavelmente não querendo ver a arma no momento do disparo, a colocara em uma posição um tanto inusitada, quase atrás da nuca. Baseado nessa circunstância, o Instituto de Criminalística, sob grande pressão da influente família do morto, acabou concluindo pelo homicídio.

Faltava, entretanto, “arrumar” o autor. As suspeitas passaram a recair sobre sua namorada, que em vida só fizera bem ao moço.

Intimada a comparecer certa tarde à Delegacia de Homicídios, no DEIC, eu, então um jovem advogado, a acompanhei. Lá chegando, um arbitrário delegado não permitiu que eu ficasse, dizendo que iria interrogar a cliente pelo tempo que fosse necessário, inclusive noite a dentro, e acrescentando: “se eu pedir um sanduíche, também peço para ela”.

Percebendo que a cliente ia ser torturada, dirigi-me ao Fórum Criminal, onde obtive junto ao eminente Juiz Luiz Benini Cabral, à época Presidente do 1º Tribunal do Júri e depois Desembargador, uma liminar em habeas corpus, concedendo-lhe salvo conduto.

Não havendo àquela hora oficiais de justiça na Vara do Júri, obtive do Magistrado autorização para que um oficial de justiça de outro Juízo cumprisse o mandado e resolvi acompanhá-lo à Delegacia, levando-o em meu carro.

 

Ao chegarmos, quando o delegado leu o que eu escrevera no habeas corpus, cuja cópia estava anexa ao mandado, ficou furioso.

Por instantes, achei que ele, que portava uma arma na cintura e se mostrava totalmente descontrolado, poderia me dar um tiro.

Nesse momento, percebi que havia atravessado “o portão do cemitério”, pois não precisava ter ido com o oficial de justiça até a Delegacia.

O delegado só se acalmou quando o oficial de justiça lhe disse que iria relatar tudo que ele estava dizendo em sua certidão.

Uma hora depois que eu e o oficial deixamos o DEIC, o delegado levou, em seu próprio carro, minha assustada cliente até a casa dela, ali a deixando não sem antes dizer que ela era “testemunha” de que fora bem tratada…

Meses após, um outro delegado propôs que a moça se submetesse ao detector de mentiras. Embora o teste não tenha valor científico, ela, totalmente inocente que era, com minha concordância, de imediato aceitou.

Na data aprazada, ao chegarmos à Delegacia em que o teste seria aplicado, verificando que ficava no mesmo prédio do DEIC em que quase fora torturada, a jovem entrou em pânico, impossibilitando sua aplicação, pois, a qualquer pergunta banal, seu coração já disparava.

Tempos depois, o inquérito acabou arquivado como sendo um homicídio de autoria desconhecida. E a infeliz família judia se sentiu, enfim, um pouco mais consolada…

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