Da ausência de dolo na conduta do psicótico em surto
Da ausência de dolo na conduta do psocótico em surto*
Domingos Barroso da Costa
Sem oposições consideráveis, é consenso que o diagnóstico de psicose quando da prática de uma conduta tipificada pela lei penal afasta a culpabilidade de seu agente, considerando que é inimputável, por doença mental, conforme definição psiquiátrica. Contudo, uma maior aproximação da questão indica que as peculiaridades que caracterizam a psicose e determinam o comportamento psicótico reclamam uma melhor e mais adequada abordagem por parte do Direito Penal. Em razão do exposto é que, neste trabalho, se pretende investigar se a condição do psicótico – especialmente quando em surto – deve representar óbice à responsabilização penal do agente ou, conforme aqui se sugerirá, verdadeira excludente de seu dolo – e, logo, da tipicidade de sua conduta –, o que se examina a partir das teorias e conceitos que contemporaneamente edificam e sistematizam o Direito Penal.
Em verdade, retoma-se aqui, mas com outro enfoque, uma discussão já iniciada no artigo intitulado “Sobre a inimputabilidade do psicótico”, publicado em março de 2008, no Boletim n. 184 deste Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Porém, com o presente estudo pretende-se ir um passo adiante, inaugurando um novo debate, que gire em torno da possibilidade de se afastar a tipicidade da conduta praticada pelo psicótico em surto, o que se entende possível em razão da ausência do dolo. Ou seja, cabe debater se o surto psicótico, antes mesmo de determinar a elisão da culpabilidade, não seria suficiente a indicar a ausência de dolo por parte de seu agente.
Exposto o questionamento, visando demonstrar essa possibilidade, cumpre verificar, portanto, se o conceito de dolo amplamente acolhido pela doutrina conta com elementos adequados a abrangerem e, logo, se aplicarem à conduta do psicótico em surto. Ou seja, cabe perguntar se o psicótico em surto é capaz de dirigir finalisticamente sua conduta, a partir de uma vontade consciente. Isso porque se sabe que, desde Welzel, ao Direito Penal só interessam condutas que sejam finalisticamente dirigidas, ou no sentido de contrariar a lei penal – o que caracteriza o dolo –, ou no de atingir objetivos conformes ao ordenamento – o que indica a culpa, que se faz penalmente relevante não pela vontade do agente, mas pelo resultado danoso decorrente de uma conduta praticada sem a observância do dever objetivo de cuidado.
A vontade a que se refere, para além de implicar uma finalidade, requer a capacidade do agente de se projetar no futuro através de previsões, conhecimento de limites e cálculo de consequências. Tais requisitos, por si só, já demonstram que a vontade relevante para o Direito Penal tem por pressuposto a consciência do agente que a manifesta, mesmo porque é ela que lhe possibilita reconhecer os elementos de uma conduta criminosa, projetar-se no futuro e conhecer as possíveis consequências de seu comportamento, discernindo sobre os limites que poderão ou não ser através dela violados. Não à toa que, como já antecipado, se entende “por dolo a consciência e a vontade de realização dos elementos objetivos do tipo de injusto doloso (tipo objetivo). Dolo é ‘saber e querer a realização do tipo objetivo de um delito’. Não exige a consciência da ilicitude, que é elemento da culpabilidade”.(1)
Como se verifica, não abrangendo a consciência da ilicitude do fato, a caracterização do dolo requer a consciência atualizada quanto à prática de elementos objetivos que caracterizam uma determinada figura típica. E é com base no que se entende por consciência que se faz viável defender a tese segundo a qual pode ser atípica, por ausência de dolo, a conduta praticada pelo psicótico em surto.
Toma-se por consciência a capacidade própria ao homem de, na condição de ser racional e moral, sustentar-se sobre uma estrutura simbólica que lhe permite situar-ser no tempo e no espaço, possibilitando-lhe reportar-se ao passado através da memória, e projetar-se no futuro através da promessa. Por isso mesmo, trata-se a consciência daquilo que permite ao ser humano saber-se humano, na medida em que convive com outros semelhantes, os quais, com ele, dividem, em maior ou menor grau, o mesmo repertório de significantes e significações, manifestações simbólicas estruturais que funcionam como referências externas aptas a garantir uma realidade comum, uma ponte para o outro que viabiliza a coexistência numa comum-unidade.
Portanto, pode-se afirmar que a consciência uniformiza, iguala pela linguagem que a constitui, a qual funciona como lei/limite comum, o nomosque, separando o eu do outro, permite sua convivência e coexistência.
E é justamente a ausência desse nomos que caracteriza a conduta do psicótico em surto, razão pela qual, em se comprovando essa circunstância, não há de se falar em uma conduta dirigida segundo uma consciência, mesmo porque a afirmação desta pressupõe uma realidade simbólica compartilhada que só se viabiliza por aquele nomos ausente. Em suma, durante o surto, esfacelado esse nomos, o psicótico desconecta-se da realidade compartilhada, perdendo-se numa (ir)realidade exclusiva, que se impõe à sua vontade. Nessa (ir)realidade exclusiva, não há espaço para comunicação, porque interrompidas ou cruzadas as linhas de transmissão simbólica, o que, por óbvio, também se aplica às normas de conduta consciente e coletivamente pactuadas.
Posto isso, diante dessa desamarração da teia simbólica provocada pelo surto psicótico – que enclausura o agente na irrealidade de seu imaginário –, verifica-se a necessidade de se realizar perícia especificamente voltada à apuração da consciência do agente, quanto aos elementos objetivos caracterizadores da conduta típica que se lhe atribui. Desde que realizada por profissionais especializados, registrem-se as plenas possibilidades dessa apuração, a qual se mostra imprescindível à justa aplicação do Direito Penal, questão sempre delicada devido à violência de sua intervenção e a incessante necessidade de legitimá-la.
Afinal, sabe-se que um psicótico em surto, imerso em sua (ir)realidade exclusiva, pode tomar para si coisa que não entende alheia, assim como pode tirar a vida de uma pessoa sem entender que a está matando. São dois breves exemplos que visam conferir concretude às abstrações até aqui trabalhadas, mas que se constroem a partir de situações possíveis, as quais, em ocorrendo, reclamam uma resposta adequada e justa por parte do Direito Penal.
Notas
(1) PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral: arts. 1º a 120. 2ª ed. rev. atual. e ampl., 2. tir. São Paulo: RT, 2001.
*Artigo extraído do Boletim IBCCRIM ano 18, número 215, de outubro de 2010