Aplicação dos efeitos do acordo de
não persecução penal aos condenados
Roberta Toledo Campos
Professora e Advogada Criminalista.
Mestre pela PUC/SP.
roberta.toledo@uol.com.br
O acordo de não persecução penal (art.28-A do CPP) foi instituído no Brasil pelo Pacote Anticrime, que entrou em vigor em janeiro de 2020 (Lei n. 13.964/2019).
Como o próprio nome indica, o ANPP é um acordo celebrado entre o Ministério Público e o investigado que, em troca não ser submetido ao peso de um processo penal, cumpre pena restritiva de direitos e outras condições.
Para se ter direito ao ANPP, alguns pressupostos devem ser verificados:a) que a pena mínima em abstrato seja inferior a 4 anos, considerando as majorantes e as minorantes do caso concreto; b) confissão do crime pelo agente; c) não seja caso de arquivamento da investigação; d) não seja crime praticado com violência ou grave ameaça contra pessoa; e) não se tratar de crime de violência doméstica ou familiar, ou praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor; e) não seja o agente reincidente e que não pode ter antecedentes que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas (cf. a Súmula 444 do STJ); f) não seja cabível a transação penal; e g) não ter sido beneficiado nos últimos 5 anos com ANPP, transação ou sursis processual.
Preenchidos esses pressupostos, o Ministério Público e o agente discutirão as condições do acordo, entre elas: reparação do dano; cumprimento de pena restritiva de direitos; renúncia aos instrumentos, produto ou proveito do crime; pagamento de prestação pecuniária.
Celebrado o acordo, este será submetido à homologação judicial para controle de legalidade e voluntariedade.
Uma vez cumprido o ANPP, o juízo competente decretará a extinção da punibilidade (art.28-A, §13, CPP).
Como norma processual de natureza mista aplicam-se as regras de direito intertemporal de acordo com as regras do direito penal, ou seja: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art.5º, XL, CF/88).
Entretanto, estudiosos do Direito divergem quanto ao limite retroativo processual de aplicação do ANPP.
O Enunciado n. 20 (Art. 28-A do CPP) elaborado pelo Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminalestabelece: Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. (Disponível em https://criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/GNCCRIM__ANALISE_LEI_ANTICRIME_JANEIRO_2020.pdf Acesso em 06/08/2020).
Aury Lopes Jr. e HyginaJositaentendem que há restrições na aplicação do ANPP, pois se aplica a todos os processos em curso, ainda não sentenciados até a entrada em vigor da lei (op. cit.).
Ali Mazloum e Amir Mazloum, da mesma forma, entendem incidir também aos processos criminais em curso, apanhados pelo princípio da obrigatoriedade da ação penal. Cabe ao Estado, agora, abrir ao réu a oportunidade de ter sua punibilidade extinta mediante a proposição de acordo pelo Ministério Público e consequente cumprimento das condições convencionadas (Acordo de não persecução penal é aplicável a processos em curso. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-fev-07/opiniao-acordo-nao-persecucao-penal-aplicavel-acoes-curso Acesso em 06/08/2020).
Data venia, ouso discordar em parte desses posicionamentos.
Ainda que sentenciado ou mesmo já tendo cumprido pena, o agente tem direito aos benefícios produzidos pela nova lei, pois a irretroatividade neste caso é irrestrita.
Não temos autorização constitucional para estabelecer restrições à retroatividade da novatio legis in mellius, pois assim foi estabelecido: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art.5º, XL, CF/88).
Nesse sentido, o art. 2º, parágrafo único, do CP determina que a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
Portanto, não importa o modo pelo qual a lei nova favoreça o agente, ela será aplicada a fatos pretéritos à sua entrada em vigor.
Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina ensinam que a retroatividade não é facultativa, sim, obrigatória, e deve ser aplicada tanto em desfavor do acusado (quando o processo ainda está em andamento) como do condenado definitivo, ou seja, mesmo após a sentença final, com trânsito em julgado (Direito Penal: parte geral:v.2. São Paulo: Ed. RT, 2007, p. 95).
Se já houver sentença, ou o condenado já tiver cumprido pena, não será possível a celebração de um ANPP, pois se o condenado vier a cumprir outras e novas condições além daquelas fixadas na sentença, isso implicará em bis in idem, o que é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio.
Entretanto, se o caso preencher os pressupostos do ANPP, o condenado fará jus à permanência da sua primariedade, não podendo a sentença condenatória transitada em julgado ser considerada para fins de reincidência conforme o benefício do art.28-A, §13, do CPP.
Similis ao art.120 do CP em relação à sentença que conceder perdão judicial que não será considerada para efeitos de reincidência.
Quanto à competência para a aplicação da novatio legis in mellius: se a lei mais benéfica é anterior à sentença condenatória transitada em julgado, a competência para empregar a lexmitior é do juízo processante; se posterior, caberá ao juízo da execução.
O art.66 da LEP diz que é competência do juiz da execução aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado, bem como declarar extinta a punibilidade.
Acredita-se que a jurisprudência não se oporá, considerando a Súmula 611 do STF e a recente decisão do STJ, que entendeu que o juízo da execução pode afastar a reincidência reconhecida pelo juízo de conhecimento:
Agravo regimental improvido. Concedido habeas corpus de ofício, para afastar a reincidência reconhecida pela Corte a quo e, via de consequência, restabelecer a dosimetria da pena constante da sentença de fls. 233/236, bem como reconhecer o caráter não hediondo da conduta perpetrada pelo agravante. (AgRg no REsp 1.848.017/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 16/06/2020, DJe 23/06/2020).
Entretanto, se o condenado já cumpriu pena e foi decretada a extinção da punibilidade, para declarar que o caso preenche os pressupostos do art.28-A do CPP e que a sentença não será considerada para efeitos de reincidência,impõe-se ingressar com a revisão criminal (art.621, III, CPP).
Paulo Queiroz entende que, ao contrário do que está na doutrina, as hipóteses legais de rescisão da coisa julgada penal não são taxativas, visto que casos há que, embora não previstos no art. 621 do CPP, admitem perfeitamente a revisão da sentença, a exemplo da retroatividade da lei penal mais favorável.
Segundo ele, cabe também revisão no caso de retroatividade da lei penal mais branda (abolitio criminis ou novatio legis in mellius), se tal não for reconhecido próprio juiz da execução ou pelo tribunal em habeas corpus ou em agravo em execução. Embora a competência para tanto seja do juiz da execução penal (Súmula 611 do STF: Transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna), nada impede a eventual propositura da revisão no particular. (Revisão Criminal. Disponível em https://www.pauloqueiroz.net/revisao-criminal-2/ Acesso em 06/08/2020.).
É isso, restrições a direitos fundamentais só se forem constitucionais!
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