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Livre informação jornalística e censura judicial

Livre informação jornalística e censura judicial*

René Ariel Dotti

1. Introdução

No dia 30 de abril de 2009, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente o pedido formulado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130, para o efeito de declarar não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei Federal nº 5.250, de 09.02.1967, a Lei de Imprensa. O Partido Democrático Trabalhista – PDT, autor da ADPF, sustentou que o diploma, regulador da liberdade de manifestação de pensamento e informação, não fora recepcionado pela Constituição Federal de 1988, em especial pelo disposto no art. 220, §1º: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”.

A petição foi acolhida por 7 (sete) dos 11 (onze) Ministros do Supremo Tribunal Federal: Carlos Ayres Britto (relator), Eros Grau, Menezes Direito, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Cezar PelusoCelso de Mello.

Os Ministros Joaquim BarbosaEllen GracieGilmar Mendes deferiram parcialmente a Arguição para manter a vigência de alguns dispositivos, porque estariam em harmonia com a Carta Política,notadamente os que definiam os crimes e disciplinavam o direito de resposta.

O Ministro Marco Aurélio votou pela improcedência da ADPF, argumentando que a substituição do diploma atacado deveria ficar a cargo dos representantes do povo brasileiro, sem ter-se, enquanto isso, o vácuo que só levaria à babel e à insegurança jurídica. Em seu voto vencido, ponderou que a Lei de Imprensa foi purificada pelo crivo equidistante do próprio Judiciário ao não aplicar os dispositivos que se contrapunham à Constituição.
2. Alguns aspectos do voto vencido

Aludindo aos estudos e à minha contribuição doutrinária durante muitos anos no trato desta matéria e, em especial, como relator de um Anteprojeto de Lei de Imprensa elaborado por comissão de juristas e jornalistas insti tuída pela Ordem dos Advogados do Brasil,(1) o MinistroMarco Aurélio destacou vários aspectos positivos daquele disegno di leggee rejeitou a premissa, utilizada pela imprensa e pela própria Corte, de que o julgamento teria o propósito de varrer o chamado lixo autoritário, como herança do regime militar.

Considerou equivocada a interpretação, dada pela maioria dos juízes do STF, segundo a qual a cláusula de reserva do §1º do art. 220 da Lei Fundamental seria obstáculo a impedir a elaboração de leis a respeito da liberdade de imprensa, ainda que contenham disposições de reforço à proteção desse bem jurídico e de punição dos abusos.
3. Concepção democrática da liberdade de informação

Segundo autorizada doutrina, o vocábulo informação designa o conjunto de condições e modalidades de difusão, para o público (ou colocada à disposição do público), sob formas apropriadas de notícias ou elementos de conhecimento, ideias ou opiniões.(2) Em outras palavras, informaçãosignifica o conhecimento de fatos, de acontecimentos, de situações de interesse geral e particular, “que implica, do ponto de vista jurídico, duas direções: a do direito de informar e de ser informado. A primeira, observaAlbino Greco, coincide com a liberdade de manifestação do pensamento pela palavra, por escrito ou por qualquer outro meio de difusão; a segunda, indica o interesse sempre crescente da coletividade para que tanto os indivíduos como a comunidade estejam informados para o exercício consciente das liberdades públicas”.(3)

direito de informar, no plano da comunicação social, é exercido pelos jornalistas ou por qualquer outra pessoa que manifesta o seu pensamento em meio impresso ou de difusão de sons e imagens. O direito de ser informado é inerente ao cidadão como expressão de direito individual garantido pela Constituição (art. 5º, XIV). Há, em meu entendimento, uma outra direção: é o direito de se informar, de caráter positivo, e que é exercido por iniciativa de qualquer pessoa, ao procurar, no rádio, no jornal, na televisão ou em outro veículo, os assuntos de seu interesse.

A Constituição de 1988, ao declarar a liberdade de informação jornalística(art. 220, §1º), não restringe a sua compreensão ao meio impresso de comunicação, mas a qualquer outro veículo de divulgação do pensamento.

A concepção democrática da liberdade de informação é afirmada em diversos dispositivos da Lei Fundamental e, especialmente, com a criação do Conselho de Comunicação Social, como órgão auxiliar do Congresso Nacional (art. 224). As suas atribuições são amplas, como se infere da leitura do art. 2º da Lei nº 8.389, de 30.12.1991, e é integrado por representantes das empresas proprietárias de veículos de comunicação social, por categorias profissionais e por representantes da sociedade civil.

Os direitos de informar, de ser informado e de se informar devem ancorar nos interesses, anseios e esperanças da sociedade civil. A propósito,Gandra Martins“Liberdade de imprensa, para mim, é terem, todas as correntes do pensamento e da realidade social, o mesmo reflexo no conteúdo editorial e noticioso, e não apenas algum espaço esporádico e marginal, que serve somente como álibi para manter uma certa aparência de pluralismo e imparcialidade”.(4)
4. O risco para a liberdade de informação e a democracia

Na aludida sessão de julgamento, o Ministro Marco Aurélio perguntou a si mesmo em que país estava vivendo quando a maioria da Corte leu no §1º do art. 220 da Constituição (“nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística (…)”), a proibição para legislar nesse domínio, embora ampliando o arco de proteção das liberdades de informação e de comunicação social.

O Ministro Gilmar Mendes apelou, sem êxito, pela manutenção de regras mínimas para o exercício do direito de resposta, cuja ausência provocaria, geralmente, o “desequilíbrio de armas” entre o veículo ofensor e a pessoa ofendida. Embora ainda insuficientes, elas eram observadas no cotidiano judicial e extrajudicial há quase meio século.

O art. 5º, V, da Constituição Federal, que assegura o direito de resposta proporcional ao agravo, não é autoexequível, como foi decidido. Na ausência de regras próprias e indispensáveis, a vítima do abuso ficará à mercê dos sicários da honra e sujeita a um esquisito diálogo entre a corda e o pescoço, na liturgia do enforcamento moral. É um truísmo afirmar que a Lei nº 5.250/67 continha dispositivos que não foram recepcionados pela Carta Política de 1988. Justamente por isso, nunca foram aplicados pelos juízes e tribunais, como a censura de espetáculos e diversões e a apreensão de impressos por ordem do Ministro da Justiça. Mas, ao repudiar de cambulhada disposições mais favoráveis que as previstas pelos Códigos Penal, Processual Penal e Civil, a Suprema Corte instaurou o hiato entre a legalidade e o regime de insegurança jurídica.

O confronto entre o diploma especial descartado e a legislação criminal comum, revela prejuízos para a plena liberdade de informação em geral e para os jornalistas em especial. Basta verificar, entre muitas hipóteses, as causas de exclusão de ilicitude penal e civil e os prazos de prescrição. Aquelas, mais amplas; estes, mais curtos. A vassourada no “lixo autoritário” varreu garantias de imunidade profissional que atendem situações peculiares a uma profissão cuja natureza e prática exigem tratamento jurídico próprio. A declaração de que não haveria abuso no exercício da crítica “inspirada no interesse público” (Lei nº 5.250/67, art. 27, VIII), constituía uma das muitas hipóteses de exclusão de ilicitude que não tem correspondente no Código Penal. Para o efeito de competência jurisdicional, o lugar do delito era o do local onde foi produzida a matéria (impressão, gravação e administração da agência noticiosa) e não onde ocorreram os seus efeitos (art. 42). Esse dispositivo, jogado fora, impedia a distribuição pelo País de milhares de processos nos quais as supostas vítimas teriam sofrido a repercussão do dano. É elementar que, nas ações de indenização com a aplicação das regras gerais do processo civil, serão acesas as fogueiras de inquisição em inúmeras comarcas, assim como ocorreu com as múltiplas ações de indenização propostas pela Igreja Universal do Reino de Deus contra o jornal Folha de São Paulo.

No campo da responsabilidade civil, o desastre será incomensurável. O art. 49 da Lei de Imprensa, fiel ao Código Civil de 1916, mantinha a regra clássica de exigir a culpa ou o dolo para obrigar à reparação do dano. Mas já existe precedente, com base no parágrafo único do art. 927 do Código Civil, estabelecendo o dever de indenizar independentemente de culpa, “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. Esta foi a decisão unânime do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, de 28.11.2007, que, valendo-se desse dispositivo, aplicou a teoria da responsabilidade objetiva e condenou a empresa jornalística pela divulgação de fotografia de residência, vinculando-a, equivocadamente, a local de prostituição e uso de drogas (RT 870, p. 368).

É possível, assim, surgir a orientação jurisprudencial de considerar o jornalismo como atividade de risco para autorizar indenizações de grande valor financeiro. Isso é péssimo para a liberdade de informação e o Estado Democrático de Direito.

Em tema da liberdade de imprensa, vem à lembrança a inspirada frase deThomas Jefferson (1743-1826), terceiro presidente dos Estados Unidos e advogado de notável prestígio. Disse que, “se lhe coubesse decidir entre um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria em preferir a última alternativa”.
Notas

(1) Evandro Lins e Silva (coordenador), René Ariel Dotti (relator), João Luiz Faria Neto, Leônidas Rangel Xausa, Luís Francisco de Carvalho Filho e Manoel Alceu Ferreira (Diário do Congresso Nacional, 14.08.1991, seção II, p. 4763-477).

(2) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 20ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 244.

(3) Apud, SILVA, José Afonso da. Ob. e loc. cit.

(4) GANDRA MARTINS, Ives. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, São Paulo: Editora Saraiva, 1998, vol. 8º, p. 886 (nota de rodapé).

* Artigo extraído do Boletim IBCCRIM ano 18, número 214, de setembro de 2010

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