O JABUTI DA CONSTITUIÇÃO
(Roberto Delmanto)
No jargão legislativo chama-se “jabuti” a prática dissimulada e antiética de introduzir em determinado projeto de lei um artigo ou trecho que nada tem a ver com o tema tratado ou que o distorce, e que só mais tarde vem a ser percebido.
Nossa Constituição Cidadã, como a denominou Ulysses Guimarães, também tem o seu.
Trata-se do art. 142, caput, do Título V (“Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”) que, sob a rubrica “Das Forças Armadas”, dispõe:
“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais, e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Ao que consta, referido “jabuti”, de autoria não muito clara, se constituiu na introdução sub-reptícia do último trecho: “à garantia dos poderes constitucionais, e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Tal redação, no mínimo malfeita, tem servido para que grupos autoritários de direita a interpretem como tendo erigido as Forças Armadas em um “poder moderador”, cabendo-lhes intervir nas disputas entre os poderes constitucionais, e decidir em favor de um ou de outro.
Nada mais falso, pois o referido art. 142 não fala nesse poder, nem permite aquela interpretação.
O poder moderador era expressamente previsto na Constituição do Império, tendo D. Pedro II, em seu longo reinado, o usado com prudência e sabedoria.
Mas tratava-se de um regime parlamentarista, no qual o Imperador era o Chefe do Estado, mas não o Chefe de Governo, este exercido por um Gabinete presidido pelo Primeiro Ministro.
No regime republicano presidencialista sob o qual vivemos hoje, as Forças Armadas, embora “instituições nacionais permanentes”, fazem parte do Executivo.
À outra conclusão não se pode chegar por estarem elas “sob a autoridade suprema do Presidente da República”, que é o Chefe do Poder Executivo.
Assim, seria de todo inconstitucional que as mesmas, submetidas à autoridade presidencial, e, portanto, integrantes do Executivo, pudessem intervir, e decidir, em eventuais disputas deste com o Legislativo ou o Judiciário.
Não exercem poder moderador, que não consta do citado art. 142 ou de qualquer outro dispositivo da atual Carta Magna, nem podem, à evidência, decidir sobre os poderes constitucionais.
A tripartição destes, idealizada por Montesquieu, continua válida em todos os países democráticas como o nosso. Nela, o Legislativo elabora as leis e fiscaliza o Executivo, este administra o país e o Judiciário dirime as controvérsias entre ambos.
E, dentro do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, como sua instância máxima, é o guardião e o intérprete maior da Constituição da República.
Também não exerce poder moderador, que, como acima dito, não existe entre nós, mas as decisões proferidas pelo seu Pleno são a palavra final, que deve ser respeitada não só pelo Executivo e pelo Legislativo, mas por todos os cidadãos, a começar pelo próprio Presidente da República, submetido como os demais ao império da lei.
Pensar diferentemente, seria trair a Constituição, o que, como disse o sempre lembrado Ulysses Guimarães ao proclamá-la, pondo fim a um longo período ditatorial, equivaleria a trair a pátria…