Memórias de uma guerra suja
Paulo Sérgio Leite Fernandes
Surge, editado pela “TOPBOOKS”, o livro “Memórias de Uma Guerra Suja”, consistente em depoimento prestado por Cláudio Guerra a Marcelo Netto e Rogério Medeiros. Marcelo, segundo contracapa do livro, é jornalista antigo, passando pela Revista “Veja”, o “Globo” e TV “Globo” em Brasília, ocupando, à época, a presidência da Radiobrás. Rogério Medeiros, jornalista e fotógrafo, trabalhou em Vitória, passando ao Jornal do Brasil e ao “O Estado de S. Paulo”. “Memórias de Uma Guerra Suja” é, também, livro sujo, porque traz as confissões de um matador arrependido, quem sabe, mas sempre um matador. Eu o chamei assim, pecador arrependido, antes de ler as orelhas da obra. Li que o assassino emperdenido é, agora, pastor evangélico. A apresentação acentua que o depoente ainda está preso, prestando serviços à Justiça. Cu ida-se de uma espécie de autopunição porque, no final das contas, admitir as próprias culpas, quando são graves, é tarefa difícil, constituindo preparação para o adiante, ou o além, ou para a terra do nunca. De qualquer maneira, nem mesmo os primitivos se livravam da expectativa do encontro com os deuses ou os demônios. Qui lo sa?
Não quis ler o livro inteiro. Não consigo. Lembro, dos idos mefistofélicos iniciados em 1964, alguns episódios nos quais integrei as parcelas mais suaves, porque nunca estive, realmente, no centro daquele vendaval e nunca fui incomodado por militares ou agentes da ditadura. Não havia Habeas Corpus. A solução era o maneirismo, a paciência, a teimosia. Outros advogados meteram fundo as mãos na massa, mas tinham, quiçá, vinculação ideológica que me faltava. Sempre tratei do todo cumprindo minhas atribuições, mas fugindo às contingências de natureza política, que, de resto, não significavam e ainda não significam muita coisa. São, para mim, fenômenos históricos. Vão e vêm. Apenas isso. Intrometi-me naquelas coisas, talvez, porque sofria com a dor das famílias e dos presos torturados pelo regime. Ou porque os milicos me trata ram mal no serviço militar, quando eu era moleque. Já é uma explicação.
Fora isso, andei pela auditoria de guerra, na Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo, defendendo um ou outro companheiro e estudantes colhidos nas passeatas reprimidas pelo então Major Erasmo Dias. Alguém, tempos atrás, me tornou depositário do pedaço de ancinho usado para intimidar José Dirceu, em Ibiúna. Guardei e devolvi, mais enferrujado do que antes, certamente.
“Memórias de Uma Guerra Suja”, se verdadeiro for, é breviário de um executor merecendo, talvez, ser usado pela chamada “Comissão da Verdade”. Há uma em Brasília, presidida por Gilson Dipp. São Paulo criou a sua. A posse é dia 26, no salão nobre da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Extravagantemente, as comissões da verdade não têm a função de punir, pois a anistia já passou pá de cal sobre o castigo. Procura-se saber, apenas e na medida do possível, o que aconteceu nos porões ditatoriais. O livro em questão deve ter utilidade, pois o Brasil de hoje é o país da delação premiada. Aqui, entretanto, o confitente agiu bem, não esperando a benevolência dos homens. Bate no peito, põe o habito do pregador, ajoelha-se e espera as benesses do além. A conversa, lá fora, vai ser dura. Eles se entendem. Ou não. Glauber Rocha, no passado, fez um filme chamado “Deus e o diabo na terra do sol”. Aquilo queima…