O Juiz Federal Ali Mazloum captou o paradoxo: não se pode tirar do Ministério Público o que ele não tem
O Site não tem hábito de republicar artigos postos em outros órgãos de divulgação. Este, entretanto, vale a pena. É do Juiz Federal Ali Mazloum. Leia-se:
PEC 37, um debate desnecessário *
Ali Mazloum
Defensores do poder investigatório do Ministério Público (MP) tacharam o Projeto de Ementa Constitucional (PEC) n.º 37/2011 de “PEC da impunidade”, pois retira dessa instituição a atribuição de investigar crimes. De outro lado estão aqueles que entendem ser apenas da polícia judiciária (civil e federal) essa tarefa. Ambos os lados sustentam na Constituição federal suas teses. Basicamente, o primeiro grupo extrai da “teoria dos poderes implícitos” essa legitimidade: a concessão expressa de uma função a determinado órgão confere-lhe, implicitamente, os meios necessários para sua efetivação. Assim, cabendo ao MP promover, privativamente, a ação penal (artigo 129, I), estaria implicitamente autorizado a também investigar. O segundo grupo deita argumentos na dicção do artigo 144, § 1.º, IV e § 4.º, o qual estatui que as funções de polícia judiciária devem ser exercidas, com exclusividade, por organismos policiais.
Estariam autorizados pela Constituição tais raciocínios antagônicos? O sistema constitucional, como conjunto de normas necessariamente harmônico e coeso, traz em sua tessitura a resposta: cabe com exclusividade à polícia a investigação criminal e, privativamente, ao MP a promoção da ação penal. Funções distintas exercidas por órgãos diferentes, sem relação de meio e fim entre elas. Há incompatibilidade argumentativa do MP, espécie de autofagia, pois não se pode tirar aquilo que não tem! E ninguém acredita que, outorgando-se o poder investigatório ao órgão, possa ele reduzir a cifra negra da impunidade alusiva aos 50 mil assassinatos anuais, dos quais apenas 8% são desbaratados, para espanto nosso e das Nações Unidas, salvo se o contribuinte jorrar pesados investimentos destinados à reformulação do MP, com a criação de uma gigantesca estrutura a ser sustentada paralelamente aos diversos organismos policiais existentes.
Em abono a esse entendimento, observe-se que o constituinte, na repartição de competências – pedra de toque de nosso sistema federativo e republicano -, sempre que empregou os termos “exclusivo” e “privativo” o fez com precisão de alcance. A competência exclusiva é conferida a um ente ou órgão e não pode ser delegada (ex. artigo 21 da Constituição), e a privativa é a competência instituída a um ente, sendo permitida a delegação (ex. § único do artigo 22 da Constituição). Incide o princípio da conformidade funcional, pelo qual o resultado de uma interpretação não pode subverter o esquema organizacional e funcional adrede estabelecidos pelo legislador. A coerência dos termos utilizados pelo constituinte pode ser haurida até mesmo da instituição da ação penal subsidiária ou privada, situação inocorrente em relação à investigação criminal (privada!).
A despeito do quanto afirmado até aqui, podem-se extrair do contexto constitucional duas exceções à regra, pelas quais investigações motu proprio da instituição ministerial estariam permitidas. É preciso desvendar o real sentido das normas envolvidas para encontrar aquilo que o legislador constituinte quis dizer e pretendeu alcançar. É isso o que importa, não a vontade dos órgãos em contenda. Com efeito, as normas constitucionais devem ser interpretadas a partir da percepção de seu conjunto, de uma visão sistemática em que os diversos elementos se interpenetram, sem desprezo, é certo, da literalidade do enunciado normativo. Todos sabem que colher significado que o termo não comporta é criar direito novo, o que é vedado ao intérprete.
Uma ordem jurídica pressupõe que os elementos que a constituem estejam em comunhão com o todo e, entre si, haja coerência. Nessa toada, cumpre destacar que o MP tem, dentre as variadas funções, a missão de exercer o controle externo da atividade policial (artigo 129, VII, Constituição). Controlar tem o sentido de fiscalizar, monitorar, submeter à vigilância e, para tanto, decorrência natural e lógica dessa tarefa, diante de desvios policiais que possam configurar crime funcional (ex.: corrupção, prevaricação, etc.), caberia ao MP promover investigação (sem prejuízo das atribuições da polícia judiciária). Aqui, portanto, aplica-se com folga a teoria dos poderes implícitos, pois para exercer o controle externo com a eficiência exigida pela Constituição o meio investigatório torna-se imprescindível. Esse entendimento está em harmonia com o modelo de controle externo traçado no artigo 71 da Constituição, que concede ao Tribunal de Contas da União poderes os mais diversos e invasivos para bem desempenhar seu mister.
A outra exceção que autoriza o MP a investigar crimes está atrelada à sua função constitucional de promover o inquérito civil e a ação civil pública na defesa de interesses difusos e coletivos (artigo 129, III, Constituição). Sempre que os fatos em apuração pelo órgão também constituírem crime, peças devem ser encaminhadas ao membro com atribuições criminais para ofertar denúncia ou, caso necessário, empreender investigações. É um desdobramento natural dessa importante função cível do MP, uno e indivisível, estando em sintonia com o princípio constitucional da máxima efetividade e da concordância prática que regem o sistema. Com isso, garante-se que o dispositivo alusivo ao inquérito civil não corra riscos de perda em eficácia diante de uma investigação criminal concorrente, sobre os mesmos fatos, intentada por outro órgão (polícia).
Percebe-se que o sistema constitucional já trata da matéria, não havendo necessidade de reformas ou apelos maniqueístas de bem contra o mal para um sereno enfrentamento da criminalidade. Como assinalou em tinta perene o professor Miguel Reale, “o direito é uma integração normativa de fatos segundo valores”. O fim último das normas é o bem-estar do ser humano, não o seu aniquilamento por meio de toda sorte de injunções do Estado.
* Artigo originalmente publicado no site do “Estadão” em 01/05/2013
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