Impeachment: Um desserviço à democracia
Roberto Delmanto
O Brasil vive hoje um paradoxo. Reeleita legitimamente a Presidente da República, embora por pequena margem de votos, todos – situação e oposição – sabem da necessidade de um ajuste fiscal, mas se negam a apoiá-lo. Os situacionistas porque era uma bandeira dos oposicionistas, e estes porque, sendo sua a bandeira, o eleito deveria ter sido seu candidato…
Alguns chegam a falar no impeachment da Presidente. Há até voz das mais respeitáveis entendendo que, apesar de não ter agido com dolo, teria ela atuado com culpa, consistente na omissão e negligência em não apurar os desvios da Petrobrás, o que justificaria a abertura do processo.
O dolo e a culpa vêm definidos no art. 18, caput, do Código Penal. Segundo este, o crime é doloso, quando o agente quis o resultado (dolo direto) ou assumiu o risco de produzi-lo (dolo eventual), sendo que, nesta última hipótese, o agente, conscientemente, admite e aceita o risco de produzir o resultado. É, por sua vez, culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Os crimes de responsabilidade – os únicos capazes de justificar o impeachment de um Presidente da República – estão elencados na Lei nº 1.079/50.
Consistem em “atos… que atentarem contra a Constituição Federal e especialmente”, dentre outros, “contra a probidade na administração” (Parte Principal, art. 4º, inciso V). O próprio significado do verbo empregado (atentar) já deixa claro que tal ato só pode ser praticado com dolo, não a título de culpa.
Acrescente-se aqui um dado de grande relevância. Ao admitir o art 2º que “os crimes definidos nesta Lei” podem ser “simplesmente tentados“, afastou de vez a possibilidade de serem eles cometidos culposamente. Isto porque, como assentado pela Suprema Corte, não pode haver tentativa de crime culposo (STF, RT 625/388).
O art. 9º (Capítulo V) estabelece que “são crimes de responsabilidade contra a probidade na administração… proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (inciso 7). Também este crime, à evidência, somente pode ser cometido dolosamente, porque, além dos argumentos acima expendidos, é uma das formas de atentado contra a probidade na administração (cf. art. 4º, caput).
Nesse contexto, como alegar que uma Presidente que trabalha diuturna e incansavelmente, que mora com absoluta discrição na companhia da mãe e da tia idosas, e que jamais foi acusada por qualquer delator premiado, teria agido de forma incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo?
O inciso 3 do art. 9º preceitua constituir igualmente crime de responsabilidade contra a probidade na administração, “não tornar efetiva a responsabilidade de seus subordinados quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição.”
Ora, é público e notório que a Polícia Federal, subordinada ao Ministério da Justiça e, portanto, à Presidência da República, nunca agiu com tanta independência e rigor quanto na Operação Lava Jato, sendo a principal responsável pela apuração dos fatos. Assim, como alegar que a Presidente, durante o exercício de seu mandato, não tornou efetiva a responsabilização de seus funcionários (na verdade, de uma empresa mista com capital majoritariamente estatal) quando ela se tornou manifesta?
Neste momento difícil que o país atravessa, dentro de um cenário internacional também adverso, cabe à maioria que a elegeu, apoiá-la, e à minoria que perdeu a eleição, exercer uma oposição digna e construtiva, aguardando, no mais, o pleito de 2018.
Agora, pretender o impeachment da Presidente da República, além de não ter qualquer suporte jurídico, é, a meu ver, do ponto de vista político-institucional, um desserviço à Democracia.
(Roberto Delmanto, advogado criminalista, é autor do Código Penal Comentado, 8ª edição Saraiva, entre outras obras)