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Quando os melhores vão antes

 Roberto Delmanto

O destino ou o carma, contrariando a lógica humana, por vezes leva prematuramente as melhores pessoas.

Foi assim com Arnaldo Malheiros Filho, que nos deixou aos 65 anos de idade em pleno apogeu como criminalista. Reuniam-se nele qualidades pouco comuns em um mesmo profissional: vocação verdadeira, sólida cultura não só jurídica, argumentação difícil de ser contestada, destemor, combatividade, escrita primorosa, palavra fácil, dedicação plena às causas e aos clientes.

Amplamente conceituado no seio da Classe, no Ministério Público e na Magistratura, chegou a ser cogitado para a Suprema Corte, só não indo por razões políticas, em virtude de ter assumido a defesa de um acusado no Mensalão. Perdeu o Pretório Excelso, mas ganharam a advocacia criminal e seus alunos que puderam continuar contando com seu exemplo, suas aulas de Direito Penal na FGV de São Paulo e seus artigos jurídicos sempre lúcidos, esclarecedores e oportunos.

Arnaldo era simplesmente brilhante. Advogado criminal de escol, dos maiores que o país já teve, foi defensor de Presidentes, Ministros, juízes, promotores, colegas,empresários, sindicalistas e centenas de outros acusados,todos para ele igualmente importantes, dando esperança aos injustiçados. Um dos melhores alunos do Colégio São Luís, depois de formado em Direito iniciou sua carreira no escritório do grande criminalista José Carlos Dias. Com ele aprendeu a advogar, recebendo lições não só técnicas, mas morais, éticas e de coragem. Ensinamentos não escritos, mas que,  como faziam os artesãos da Antiguidade, são transmitidos oralmente  apenas aos filhos e aos discípulos mais talentosos. De assistente, tornou-se sócio, só vindo ambos a se separar anos depois.Do escritório de Arnaldo, vieram a sair outros tantos advogados penalistas que, por sua vez, fundaram suas próprias bancas, engrandecendo, com o aprendizado recebido, a advocacia criminal.

Ao lado de excepcionais qualidades profissionais, Arnaldo era, antes de tudo, uma maravilhosa criatura humana: alegre, sempre de bom humor, brincalhão, irônico sem ser ofensivo, amava a profissão, a família, os amigos, as viagens e sobretudo a vida.

Um de seus traços que eu mais admirava era sua generosidade com os colegas. Desprovido de vaidade, tão comum a nós advogados criminais, desconhecia a inveja e a maldade. Sou testemunha do seu afeto. Sempre que nos encontrávamos tinha, com seu sorriso franco, uma palavra de carinho para mim, meus filhos ou para a memória de meu irmão Celso e meu pai Dante.

Há alguns anos Arnaldo me convidou para almoçar, sugerindo o restaurante Tatini, na Rua Batataes, que costumava frequentar. Achei que ele queria conversar sobre algum caso profissional, mas o assunto era outro, pessoal.

Contou-me que, em virtude de sua combatividade, durante um rumoroso processo determinado juiz ameaçara processá-lo. A injusta ameaça não se consumou, mas ele queria me dizer que, se tivesse sido processado, já havia me escolhido para ser seu defensor, acrescentando que desejava falar-me isso antes de morrer. Surpreso com a imerecida escolha, me emocionei, não atentando para sua referência à morte, talvez inconscientemente prenunciada.

Respondi-lhe que me sentiria muito honrado em representá-lo, porém feliz em não precisar fazê-lo, pois nada mais doloroso para um advogado do que sofrer um processo pelo exercício da profissão.

Lembrei-me das palavras de Rafael Magalhães, ilustre advogado do Rio de Janeiro, que dizia necessitar o defensor “da mais ampla liberdade de expressão para bem desempenhar seu mandato” (Revista de Jurisprudência, vol. I, p. 375), palavras estas complementadas pelo lendário criminalista Sobral Pinto: “É que o patrono de uma causa precisa, muitas vezes, para bem defendê-la, assegurando assim o seu êxito, ser veemente, apaixonado, causticante. Sem que o advogado revista a sua defesa de tais características, a sorte do cliente, estará, talvez, irremediavelmente perdida “(apud Carvalho Neto, Advogados, 1946, p. 481).

             

Guimarães Rosa dizia que “alguns homens não morrem, ficam encantados”. Arnaldo ficou encantado e encantado haverá de continuar inspirando seus familiares, colegas, amigos e admiradores, e principalmente as novas gerações de criminalistas que abraçarem, com a mesma paixão sua, aquela que Voltaire considerava “a mais bela carreira humana”.

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