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Juízes não pisam duro nas ruas. Julgam.

Paulo Sérgio Leite Fernande

Somos, alguns advogados, sobreviventes de época em que a grande maioria do povo brasileiro ainda não havia nascido. Explique-se: quando Getúlio Dornelles Vargas praticou o suicídio, “saindo da vida para entrar na história”, este advogado jurava à bandeira, pois encerrava o serviço militar. Tinha 18 anos, quando muito. Era, já, um rebelde. Precavidamente, deram-lhe o pavilhão da pátria para carregar,  não um fuzil. Depois, vieram as grandes alterações políticas, com realce para João Goulart e o 1.° de abril de 1964, data hoje reconhecida como a autêntica, pois o 31 de março é mentiroso. O cronista participou de todos os movimentos posteriores, fazendo coro, em manifestações de rua, quando os militares assumiram a direção e o controle da nação. O povo aplaudiu a movimentação restauradora da honestidade imprescindível ao país. Aquilo andou. A tortura e as violações aos direitos básicos da espécie humana tomaram corpo na repressão. A cidadania começou a entender que o todo estava errado. Não se perca tempo na descrição minuciosa. Veio a Constituição de 88 e o Brasil, segundo consta, está em plena democracia. Havia muita corrupção. Há atividade remoralizadora, punindo-se políticos e empresários ditos desonestos. A Suprema Corte, entendendo haver necessidade de transparência, põe-se aberta na televisão e em debates variados. A justiça criminal se transforma em órgão extremamente punitivo porque, nas circunstâncias, a exculpação sugere mais crítica que aplausos.  Um juiz não pode ter medo. Entretanto, o magistrado se preocupa, e muito, quando precisa e não pode, sem riscos maiores, partir para a exculpação de um ou outro denunciado. No meio disso tudo, a população exige, com razão até, o encarceramento dos bandidos, mas faz vista grossa aos excessos cometidos aqui e ali, lares invadidos nas madrugadas, buscas e apreensões em próprios do Poder Legislativo, encarceramentos com manutenção excrescente de qualquer limite legal e, no fim,  projeto de lei pretendendo mais ainda, acentuar as possibilidades de repressão. No entremeio, o Ministério Público, Instituição que lá atrás cooperava, sim, com o poder militarista, assegura predominância, em plena harmonia, diga-se de passagem, com juízes a imitarem a magistratura de instrução, fazendo as vezes de acusadores, também, porque autorizam e cooperam nas providências acauteladoras praticadas nas madrugadas por policiais plenos de potencialidades. Não se diga que a Justiça não deva reprimir ilegalidades consistentes em apropriação e desvio de dinheiros públicos. Entretanto, o respeito à legislação existente é assegurado sagradamente pela Constituição, havendo cláusulas pétreas imperativas, mas chicoteadas a cada dia. É assim, com certeza, que os advogados, principalmente os criminalistas, veem a nação: de um lado, um esforço grande e necessário no sentido de saneamento dos dinheiros públicos; de outra parte, e cada vez mais, os excessos praticados nesse tipo de higienização, endeusados pelo povo, sim, porque a cidadania aplaude o arrombamento da casa do vizinho, sem suspeita qualquer de que o mesmo possa acontecer com as fechaduras de seus lares.

        Não se está a identificar originalidade. Tais comentários são comuns a todos os países em que turbações assemelhadas põem fogo nos panos que protegem as liberdades individuais. Entretanto, há acidentes de percurso raramente visualizáveis em perturbações sociais análogas. Por exemplo: juízes deixam suas togas e vão à rua, emblemáticos, protestando contra pretensões de se lhes coibir excesso na repressão, dizendo-se ameaçados no exercício da jurisdição. Os magistrados, além de prerrogativa de foro, têm em seus estatutos consequências correspondendo à chamada aposentadoria compulsória, exceção feita a algumas espécies de criminalidade, raríssimas, aliás. Anteveem problemas, se e quando acusados de alguma ação demeritória, enquanto reprimem os saqueamentos do tesouro público. Saem em correria,  segundo se diz, protestando contra tal meio de intimidação. Membros do Ministério Público fazem o mesmo, relembrando que podem deixar as atividades persecutórias. Magistrado justamente encarregado do processo e julgamento de múltiplos delinquentes abandona as vestes talares e vai ao Senado, explicando o que faz, defendendo a justiça do que já fez e retrucando às críticas sofridas durante a preleção. Advogados de defesa recebem críticas anônimas – anônimas são, pois não assinadas -, advindas de órgãos de imprensa extremamente influentes na opinião pública. Sobrevoando o todo, o instituto da delação premiada, mais as hipóteses de leniência, assumem proporções quase rotineiras, gerando-se, então, na advocacia criminal, uma especialidade antes desconhecida: o intermediador, ou seja, o profissional a fazer ponte entre o perseguidor e o perseguido. Ao mesmo tempo, as interceptações nas comunicações privadas tomam direção por  poucos conhecida, mas ciclópica.

        Tais acidentes de percurso acontecem, sim, no Brasil democrático, sabendo-se, concomitantemente, que os tribunais pátrios restringem cada vez mais o uso do habeas corpus, gerando-se na nação inteira uma cerca impeditiva, na prática, do conhecimento, tramitação e concessão hipotética do “Writ”.

        O escriba, repete, viu grande parte desse todo acontecendo, enquanto amadurecia e envelhecia. Não tinha, confessa, experiência na observação de movimentos de magistrados em camiseta. É novidade. Nos cinquenta anos passados, de 1964, soube, é claro, de um ou outro promotor de justiça arredado das funções, ou mesmo de poucos juízes privados da jurisdição, por não terem satisfeito as ansiedades do regime militaresco. Relembra Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal,  lancetados no Supremo Tribunal Federal. Não houve, ao tempo, reação qualquer contra aquilo. Tocante a Promotores de Justiça punidos pela chamada Revolução, um ou outro morreu castigado. Há remanescente vivo, com aposentadoria revertida anos e anos depois. A regra, entretanto, é que a instituição, em si, é muito prudente quando se trata de examinar o comportamento político-ideológico de seus  membros.  É lembrar, durante a ditadura, as comissões gerais de investigação. Não vale a pena falar nisso.  Não se afirme que a Ordem dos Advogados, no período, restou sem pecadilhos. Não se tem notícia, entretanto, de coonestação com os excessos na repressão, valendo notar, com surpresa até, que os criminalistas não têm encontrado grande suporte da corporação – e corporação é.

           Termine-se: juízes, membros do Ministério Público e policiais nunca, mas nunca mesmo, tiveram dose tão grande de poder nas mãos. Os magistrados, agora, restam em seus gabinetes, protegidos pela tela dos computadores, sem comunicação mínima com os advogados. Os do Ministério Público trabalham lado a lado, exercendo também o controle externo da atividade policial. No fim, magistratura, promotores de justiça, mais policiais, com interferência plena em órgãos públicos de sistema de comunicação, integram um triunvirato fortíssimo, nunca órgãos separados, mas permutando permanentemente informações e mandamentos, transformando-se o juiz, nas circunstâncias, em quase inimigo da atividade defensiva. Dentro do  contexto, é preciso dizer que o Poder Judiciário nunca precisou deixar as negras vestimentas para ter suas decisões obedecidas. A toga sempre lhe serviu de escudo. O Poder Judiciário caracteriza um corpo místico e, portanto, diferenciado. Não é bom que o magistrado se dispa de suas vestimentas sacrossantas e corra, sapateando, após aprender os chamativos preparados para a ocasião. Juízes constituem entidade silente. Aguardam. Esperam. Fiscalizam. Reequilibram disputas. Censuram. Castigam ou exculpam. É o que fazem, ou é o que devem fazer. Postos no meio do povo, não estão acostumados a tanto. Podem sofrer encontrões, chutes, xingamentos até. Excepcionalmente, recebem um tiro de bala de borracha. Podem ficar cegos, ou paralíticos.  Aconteceu a estudantes, jornalistas ou passantes. Não serão salvos se exibindo suas carteiras de identidade. Reservem-se para a coibição dos excessos da soldadesca, punindo o uso arbitrário de função pública. Deve ser assim. Assim seja.

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