Um escritor em emergência

OU

“Quatro azes e um coringa”

 

 

          Este velho escriba percebe, repentinamente, que virou uma criança grande e mal acostumada, pois viciado em ser      imediatamente atendido, como se fosse um “lord” ou coisa do  gênero. Em suma, os assistentes, a um olhar ou uma inflexão de voz, sabem o que fazer, ou qual a urgência do momento. Havia um deles, por sinal, hoje competente criminalista já com cabelos brancos começando a aparecer, que tinha como senha, enquanto sentado à esquerda do chefe, um estranho poder de comunicação não dita. Às vezes, aliás, completava uma frase do ditado, porque adivinhava, quase, a palavra a ser pronunciada pelo velho e irritadiço professor. Repentinamente, o mundo se modificou: dizem que aquilo é um bicho invadindo a humanidade, uma criatura satânica, é claro, devorando as carnes dos infelizes  e  criando mil armadilhas para vencer as defesas postas por nós. Um animal, para nós, embora se afirme que aquilo não tem vida, faltando-lhe pernas, braços, dentes, enfim. De qualquer forma, fala-se nele como inimigo cruel. Afirmam os cientistas que ele gosta de velhos (e velhas, para não se dizer que o escriba é machista), nós que já estávamos convencidos de que não aumentávamos o prazer em qualquer, ressalvado um cão fidelíssimo que nem existe mais, morto  em razão da  negligência de uma cuidadora. A introdução vem a propósito. O escriba não consegue ser filmado em sua “crônicas esparsas” quase diária, o instrumental eletrônico ficou no escritório, um pequeno mas  velho espaço deste  resistente criminalista, assemelhado a um Roberto Delmanto, mais moço, certamente, mas igualmente determinado a produzir suculentas crônicas neste “ site”. A regra imposta por Dyonne é simples: quem entra em casa não sai. Se sair, não volta, enquanto durar esta guerra. Daí, o escriba ficou reduzido a enfrentar o computador, máquina abandonada a  partir do momento em que se formou uma equipe no escritório. Lembrou-se, enquanto tentando escrever, de um dos maiores cirurgiões cancerologistas que este país tem. Dou-lhe o nome: Ademar Lopes, dedicadíssimo vice-presidente do Hospital do Câncer, aqui em São Paulo, onde o escriba desempenhou, lá atrás, a função de um dos curadores. Aquele médico ilustre, numa das conversas com o escriba, disse, rindo muito, que hoje ele costumava olhar as cirurgias, instruindo os mais jovens , aqui e ali, a cortar com mais precisão, uns e outros assemelhados a guerreiros do futuro enquanto  mexendo em instrumental sofisticadíssimo: “Paulo Sérgio, o futuro é deles, que lidam com algoritmos e microscópios eletrônicos. Nossas mãos são um pedaço do cérebro, sim, mas é bom ver como dedilham aquele sofisticadíssimo arsenal eletrônico…”

          Dentro do contexto, o escriba vai dedilhando devagar, a esposa atenta convocada a fazer reaparecer texto apagado por engano. Dyonne é purista enquanto escreve, é a única em que este escrevinhador não pode mandar. Então, é bom ter muito escrúpulo, porque num deslize mais ácido, este velho alfarrabista perde o apoio e a crônica vai pro beleléu.

     Estamos nisto, então, para manter o funcionamento de nossos hábitos, profissionais ou não. Chamo aquilo de bicho, os próprios médicos se esquecem de que ele  não é como a minhoca a se esgueirar enquanto tem fome, o animalúculo é um antagonista esperto, como se aquilo tivesse coração e estômago a apreciar iguarias. De qualquer forma, aquilo tem uma estranha vocação para preferir as criaturas gastas na sobrevivência, como se  em nós  residisse uma fonte qualquer de sabedoria. De repente, embora advindo  de um pensamento mágico,  eles teriam razão, pois os antigos estão a refletir sobre a quase insanidade em que  alguns se põem enquanto  mantendo, lá no fundo, a esperança na vitória em eleições que vêm por aí, crentes, alguns, nos conselhos e vitupérios de ex-astrólogo apaixonado pela própria crendice. No meio disso tudo, parte do povo – ou da massa- despreza a ciência e vai  para a comunicação física, numa quase autoimolação ou desafio à própria bruxa, uma briga desigual, face à superioridade do inimigo. O escriba já viu filme assim. Aliás, os humanos sempre procuram imitar a filmografia. O escriba já visualizou imagens carnavalescas em que o enfrentamento ao contágio é aberto, embora cientes, os dançarinos,  da poeira levantada do chão pelo revolutear  das coloridas roupagens dos passistas. É mais ou menos como atravessar o abismo equilibrando-se numa corda bambando no espaço, um “frisson” percorrendo a pele dos expostos, misturando-se o medo na sudorese do prazer. Há quem goste…  e há também quem resista, procurando auxiliar a tarefa dos deuses atentos ao pedido de socorro dos crentes. É assim e assim não é. Cuidem-se! Às vezes, uma aeronave despenca das nuvens, matando todos, menos um moribundo chegando de desesperada viagem buscando, sem sucesso, uma “garrafada” milagrosa posta  na geladeira  por um parente afetuoso. Isso acontece, é claro, a exemplo do engano enquanto se fornece a paciente radiografia mefítica cujo destinatário seria outro, diferença óbvia, diga-se, entre a vida e a morte. O escriba já viu as  duas cenas  na sexagenária experiência profissional. Persigna-se, crente que é nos mistérios escondidos no universo, mas procura ajudar também. Obedece. Está há dezoito dias num encarceramento voluntário, atendendo, inclusive, às reivindicações da família. É colaboração muito atenta, sim, como numa partida de baralho, um ou outro jogador tem uma carta na manga, este escriba termina romance em que “Joseph, o Cigano,”  guarda na memória o naipe e  a identificação de todos os símbolos postos no pano verde,  Joseph não facilita, examina a gesticulação do “croupier”. Repara no gesto daquele  a coçar o nariz,  sente o perfume barato da “Lenita”, toda rebrilhando entre as lantejoulas da vestimenta apertada nas ancas, o cigano sabe tudo, pensa em tudo, não quer escorregar no asfalto da avenida, fraturando o crânio numa  infeliz manobra do samba-enredo. Sabe que aquilo tudo vai passar, como no samba famoso, mas não dá chance para o acaso. O bicho está lá. esperançoso. Ajuda os fados. Não acredita nos enlouquecidos.  A vida é um jogo, sim, há sempre alguém atrás das cortinas, mas tudo deve chegar a seu tempo, sem apressamentos na chegança. Todo baralho tem quatro azes e um coringa. É bom ´prestar atenção no todo e não facilitar… E lá nave va.

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