Home » Ponto Final » Carta aos brasileiros II? – Esqueceram de mim IV

Carta aos brasileiros II? – Esqueceram de mim IV

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
Carta aos brasileiros II?
Esqueceram de mim IV


Ontem, 22 de setembro de 2010, a tribuna do território livre da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco serviu de palco àqueles sobreviventes do Golpe de 1964, os mesmos que no passado soturno protegiam os portões de ferro do prédio vetusto, defendendo-se dos policiais militares encabeçados pelo então coronel Erasmo Dias. Os PMs atiraram bombas de gás lacrimogêneo pelos buracos abertos nas vidraças. Eu estava lá dentro. Conseguira entrar, antes do fechamento do gradeado, preocupado com minha mulher Ana Maria Babette. Esta, no pátio lateral que contornava o obelisco de Júlio Frank, respirava sem querer, ao lado ou perto de algumas outras, entre as quais se achava a então esposa do Vice-Governador, o veneno infiltrado pela soldadesca desatinada. Depois daquilo a vida me conduziu a levar Cid Vieira de Souza, então presidente da Secção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil, a assinar o projeto da “Carta aos Brasileiros”, chegado ou enviado pelas mãos de José Carlos Dias. Tenho em algum lugar um exemplar primitivo do escrito. Naquele tempo as fotocópias não eram o que são hoje. Não havia computadores. Os tipos provinham de máquina de escrever. As cópias se faziam num papel chamado “termofax” e amarelavam à exposição contínua. Na verdade, havia dois textos: um construído no 6° andar da OAB, o outro concretizado a quatro ou seis mãos, sob o influxo de Gofredo, o Silva Telles. Se houvesse um teclado à frente, ressoaria no tampo do piano o hino nacional. Cid Vieira de Souza resmungou para assinar o que não era dele, não por medo, que não o tinha sequer mínimo, mas por achar melhor aquele provindo da Corporação. Eu me recordo muito bem de lhe ter dito: “ – Assine isto, embora não sendo seu, porque o cavalo passa e você não participa da restauração da democracia brasileira”. O bastonário rubricou a carta aos brasileiros. Eu era apenas um soldado. E soldados cumprem a “Mensagem a Garcia”. Marcam o papel com o suor das mãos do mensageiro.

Unidos, repita-se, naquele território sagrado adiante do claustro do mosteiro, intelectuais brasileiros em geral, estudantes, advogados e uns poucos juristas leram o manifesto transcrito abaixo. Não me pediram assinatura. Não pude aplaudir aquela declaração de princípios. Esta, no fim das contas, apenas traduzia o medo, grassando no subterrâneo da consciência de cada qual, de que o país se transformasse – e vem sendo transformado – numa autocracia megalomaníaca advinda de alguém que perdeu a medida do respeito às instituições. Afirmava Pirandello, num de seus escritos famosos: “– Assim é se lhe parece”. Desgraçadamente assim é, embora muitos não racionalizem o caminhar vagaroso do Presidente da República a um entronizar mandonista, forcejando para impor ao país soluções que a nação não deve e não pode querer, na medida em que o 1° mandatário se mumifica numa espécie de “Padre Cícero” excomungante a cuspir blasfêmias contra aqueles que não lhe admitem as ordens. Nisto sofre a própria imprensa, a mesma que acordou, quiçá, tarde demais para a monstruosidade do tamponamento. Pagam os jornalistas, em parte, o preço da negligência na fiscalização.

Os velhos sobreviventes, herdeiros daquela época mefítica, esqueceram de mim, quem sabe por meu concurso igualmente, porque o guerrilheiro serve para disparar lá atrás no início da jornada, uma espingarda de rolha a ser acompanhada, após, e agora, por disparos de canhão. Fiquei triste. Vi entre o povo a fisionomia de companheiros de batalha e descobri paralelamente um ou outro que, menino ao tempo, já amadurecera o suficiente para se lembrar, no futuro, do barulho dos cascos da cavalaria sobre o solo daquela mesma praça circundante do portal da Faculdade de Direito. Embora aborrecido, cumpro minha obrigação e publico a referida declaração de princípios. A exemplo da outra, gostaria de assiná-la também.

MANIFESTO EM DEFESA DA DEMOCRACIA

Em uma democracia, nenhum dos Poderes é soberano. Soberana é a Constituição, pois é ela quem dá corpo e alma à soberania do povo.

Acima dos políticos estão as instituições, pilares do regime democrático. Hoje, no Brasil, inconformados com a democracia representativa se organizam no governo para solapar o regime democrático.

É intolerável assistir ao uso de órgãos do Estado como extensão de um partido político, máquina de violação de sigilos e de agressão a direitos individuais.

É inaceitável que militantes partidários tenham convertido os órgãos da administração direta, empresas estatais e fundos de pensão em centros de produção de dossiês contra adversários políticos.

É lamentável que o Presidente esconda no governo que vemos o governo que não vemos, no qual as relações de compadrio e da fisiologia, quando não escandalosamente familiares, arbitram os altos interesses do país, negando-se a qualquer controle.

É inconcebível que uma das mais importantes democracias do mundo seja assombrada por uma forma de autoritarismo hipócrita, que, na certeza da impunidade, já não se preocupa mais nem mesmo em valorizar a honestidade.

É constrangedor que o Presidente da República não entenda que o seu cargo deve ser exercido em sua plenitude nas vinte e quatro horas do dia. Não há ‘depois do expediente’ para um Chefe de Estado. É constrangedor também que ele não tenha a compostura de separar o homem de Estado do homem de partido, pondo-se a aviltar os seus adversários políticos com linguagem inaceitável, incompatível com o decoro do cargo, numa manifestação escancarada de abuso de poder político e de uso da máquina oficial em favor de uma candidatura. Ele não vê no ‘outro’ um adversário que deve ser vencido segundo regras da Democracia, mas um inimigo que tem de ser eliminado.

É aviltante que o governo estimule e financie a ação de grupos que pedem abertamente restrições à liberdade de imprensa, propondo mecanismos autoritários de submissão de jornalistas e de empresas de comunicação às determinações de um partido político e de seus interesses.

É repugnante que essa mesma máquina oficial de publicidade tenha sido mobilizada para reescrever a História, procurando desmerecer o trabalho de brasileiros e brasileiras que construíram as bases da estabilidade econômica e política, com o fim da inflação, a democratização do crédito, a expansão da telefonia e outras transformações que tantos benefícios trouxeram ao nosso povo.

É um insulto à República que o Poder Legislativo seja tratado como mera extensão do Executivo, explicitando o intento de encabrestar o Senado. É deplorável que o mesmo Presidente lamente publicamente o fato de ter de se submeter às decisões do Poder Judiciário.

Cumpre-nos, pois, combater essa visão regressiva do processo político, que supõe que o poder conquistado nas urnas ou a popularidade de um líder lhe conferem licença para ignorar a Constituição e as leis. Propomos uma firme mobilização em favor de sua preservação, repudiando a ação daqueles que hoje usam de subterfúgios para solapá-las. É preciso brecar essa marcha para o autoritarismo.

Brasileiros erguem sua voz em defesa da Constituição, das instituições e da legalidade.

Não precisamos de soberanos com pretensões paternas, mas de democratas convictos.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

Deixe um comentário, se quiser.

E