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Dez homens e uma sentença

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
** Dez homens e uma sentença

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Consta da chamada filmologia a síntese de obra produzida em 1957 denominada “Doze homens e uma sentença”. Um dos personagens centrais, representado por Henry Fonda, é o oitavo jurado. Não é necessário dizer, porque todo mundo sabe, que o sistema processual penal nos Estados Unidos exige, para a condenação, unanimidade de votos. São doze os juízes de fato. A discrepância de um só impede a decisão de mérito. Dissolve-se o conselho. O filme em questão trabalha sobre a disputa entre os juízes de fato, confinados todos num local sem grande comodidade e privados da comunicação com o exterior, mais ou menos como acontece aqui nos julgamentos importantes. Naquela ficção, a teimosia de um dos jurados, desenvolvendo-se durante dias, leva à exculpação do acusado, embora, em princípio, a decisão condenatória parecesse fácil. Há outra versão, mais recente, personificada por Jack Lemmon na condição do votante desobediente. A importância do roteiro resulta principalmente das tensões despertadas pela personalidade de cada qual, sabendo-se que o ser humano traz vocações, tendências, dramas e emoções primárias ou até mesmo derivadas a partir dos primeiros fluxos da consciência. Num certo sentido, dizem os psicólogos, o menino de hoje é o homem de amanhã. Tocante à tormentosa sessão de julgamento da admissibilidade e procedência de recurso extraordinário interposto por candidato ao governo do Distrito Federal, viu-se, em grande projeção, a repetição da fantasia posta muito tempo atrás nas salas de cinema do mundo todo: horas de debates acirrados travados entre os dez ministros do Supremo Tribunal Federal levaram, na madrugada, a um impasse, pois cinco desproviam o recurso e os remanescentes o admitiam para modificar decisão censória advinda do Tribunal Superior Eleitoral. De um lado, pontificando na condução dos argumentos contrários ao recorrente, havia o relator, ministro Ayres Britto, e o ministro Levandovski e, como adversários, os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello. Os dois grupos competiram ardorosamente. O presidente Cezar Peluso conduziu os trabalhos com a liberalidade adequada à proeminência do conflito, contrariando inclusive o próprio temperamento que, sabidamente, é explosivo. Chegou-se, ao fim, ao empate pois não havia concessões. A votação, se e quando concluída, não significaria solução da pendência, inexistindo a possibilidade teórica, até então, de voto de qualidade do presidente. O presidente disse que não era déspota. Adiou-se a colheita de votos para outra sessão, havendo a possibilidade de prolongamento até depois das eleições. É bom dizer, segundo afirmativa do próprio Peluso, que o candidato poderia inclusive não ser diplomado, se o julgamento lhe fosse desfavorável.

É proibida a advogado, principalmente entre aqueles que frequentam a Suprema Corte, intromissão nas causas alheias. Só aquele que se põe de beca na tribuna conhece os meandros da causa em desdobramento. Isso vale para tudo. Até nas confissões ao cura da aldeia não se admite a interferência da madre superiora do convento. É assim que deve funcionar. Limite-se o cronista, então, a sublinhar que o regimento interno do Supremo Tribunal Federal, face à relevância do tema, foi posto à margem, pois os ministros, entusiasmados, transformaram o julgamento numa contínua e tumultuada sucessão de teses e antíteses. Tocante ao representante do Ministério Público e ao defensor, mantiveram silêncio, ressalvada pequena interferência do advogado, no terceiro terço do processo.

As divergências entre um e outro setor não podem, por razões óbvias, ser comentadas em síntese apertada. Evidencia-se apenas a preocupação com possível solução adversa ao recorrente, sabendo-se que este último – e outros em situação assemelhada – incorporam milhares e milhares de cidadãos que, independentemente de qualidades positivas ou negativas do candidato, pretendem depositar seus votos no escolhido. Cada ministro, portanto, enquanto reflete sobre a decisão a tomar, tem à volta, como espectadores atentos, centenas e centenas de nacionais aptos a introduzir, nas urnas, manifestação de vontade que tem suas razões, seus desejos e seus segredos, também. Dentro do contexto, não se destrói o futuro político do postulante, mas se penetra, inclusive, na liberdade de opção brasileira. Quanto ao resto, conteste-se insinuação malévola posta numa vinheta do jornal “O Estado de São Paulo” de 24 de setembro de 2010, manhã seguinte ao dia último do julgamento. Afirmou-se que o advogado de defesa era amigo do presidente e ultrapassou, sem interrupção, em três minutos o tempo destinado à sustentação oral, fixado regimentalmente em quinze minutos. O cronista já viu a presidência de um dos augustos tribunais do país dizer ao causídico, após o toque estridente da campainha: “– O assunto é complicado. Vossa Excelência fala o tempo que quiser”. O jornalista não sabe das minúcias perpassadas nos plenários. Se os ministros discutiram durante dez horas e agrediram multiplamente, no bom sentido, o regimento interno do Supremo Tribunal Federal, três minutos a mais na sustentação oral em prol de quem chegava carregando na mochila milhares e milhares de expectativas da cidadania poderiam, sim, fazer a diferença. Pensando bem, não se cuidava de dez homens e uma sentença, mas de milhões de angustiados brasileiros esperando a aplicação do preceito, embora havendo censores pendendo para a escolha mais severa. Isso é assim desde os tempos primitivos. Até o carroceiro da esquina sabe disso. O ser humano se comporta assemelhadamente. No circo romano, o polegar de César era o centro de atenção de todos os habitantes da cidade antiga. Salvavam-se muitos gladiadores. Outros eram sacrificados num dia aziago do imperador. Alguns passaram à história: Catão o censor, o lutador vencido, os lictores e, enfim, os personagens mais distintos. Curiosamente, o porvir não emoldurou a efígie dos carrascos e a benevolência não extravagante serviu, sim, de boa lembrança aos pósteros. Cumpre-se o dever, muita vez, deixando ao povo de Roma a vitória ou a derrota do combatente. Eis a questão.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos

** A crônica já estava no ar quando Roriz renunciou. Permanecerá o impasse em relação a outros?

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