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Setecentos e trinta mil advogados em servidão voluntária

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Este criminalista tem setenta e sete anos, dos quais passou cinquenta e poucos no exercício exclusivo da advocacia criminal. Já viu tudo. Experienciou, adulto, o resultado dos grandes conflitos mundiais, a implantação da ditadura no Brasil, Castelo Branco perdendo a vida num desastre de avião, Costa e Silva e a primeira dama, uma amornada junta governativa provisória, Medici (muito mau), Geisel (pior, quem sabe), Figueiredo e suas consultas a curandeiro, Tancredo Neves (morto depois de uma diverticulite azarada), Sarney (vivo ainda, e seus marimbondos de fogo), Collor, defendido por Evaristo de Moraes Filho (já doente o advogado, mas impávido na última grande missão), Itamar Franco e seu fusca comemorativo, Fernando Henrique (sisudo e moralista, safando-se altaneiramente do episódio dos “anões do orçamento”), Lula, o eterno (hoje sem barba e parecendo outro homem, à maneira de um Sansão descabelado) e, finalmente, Dilma, aquela que é sem nunca ter sido, mas candidata a ser outra vez o que já foi.

O escriba, decano da advocacia criminal paulista (em verdade, deve haver alguém mais antigo, basta que se apresente e reivindique o posto), é sobrevivente, mantendo milagrosamente as energias numa época em que até Jane Fonda, quando entrevistada no Brasil, afirmou tomar testosterona para permanecer esperta. É uma espécie de feiticeiro do passado, podendo portanto comparar datas, períodos e a influência diabólica, na pátria, de tendências autoritárias advindas do chamado “velho mundo”, com reflexos importantes na América do Norte, envenenando nosso país. Perguntaram ao escriba, n’outro dia, qual, no mais de meio século dedicado à especialidade, o período mais difícil. Com grande desprazer, este advogado respondeu que a advocacia criminal, hoje, é muito mais sacrificada que aquela desenvolvida ao tempo dos milicos. Naquela época, se houvesse interceptação telefônica e ambiental dos escritórios de advocacia, ela era feita rusticamente, sempre pelos homens da farda ou da polícia política, nunca por juízes togados. Os magistrados, mesmo acovardados e deitados sob as botas dos beleguins, cometiam o pecado da omissão, sim, mas desculpados pelo medo, sabendo-se que o pavor, de certa maneira, serve ao perdão de muito comportamento desavisado. Agora é diferente: as vestes talares robustecem, em muitos representantes da Jurisdição, o conluio no sentido de autorizar, determinar, enganar, trabalhar sub-repticiamente, enfim, no sentido de bisbilhotar as intimidades e o segredo dos lares, apreendendo sem dó ou piedade bens móveis e imóveis dos acusados, das mulheres, dos tios, pais, filhos, netos e até da sogra, sendo este um dos maiores castigos imposto aos réus, tudo numa plenitude de irresponsabilidade pior que aquela consequente aos atos dos inquisidores das Ordenações. Não é só: a chamada imprensa livre, aquela mesma pela qual os advogados verteram seu sangue durante o autoritarismo brasileiro, baba pelos cantos da boca, lancetando impiedosamente o presente e o futuro daqueles que, ainda não condenados, conservam puramente o estado de inocência garantido pela Constituição. Os mesmos jornais e redes de televisão, garantidores em tese dos direitos individuais, abroquelam-se sob as saias do poder, destruindo em horas a honra, a dignidade e a possibilidade de convivência de simples investigados. Por outro lado, quando um ou outro magistrado corajoso afirma, em seus despachos, que a Constituição precisa ser obedecida e a magistratura deve examinar os conflitos equilibradamente, sofre críticas e é posto sob suspeita, porque o avassalamento do instinto persecutório precisa ser mantido. O povo, de sua parte, não percebe, não entende, não concebe, mesmo, a dimensão do inferno em que se intromete enquanto pede, exige, aplaude e insiste, enfim, no encarceramento do próprio vizinho, pois aquele parede-meia lhe parece coonestador da corrupção advinda do quarteirão. É uma hora ruim, a do Brasil vertente, em que o magistrado acarinha o delator profissional, perdoando-lhe vinte e ou mais pecados graves, enquanto permuta o desvario judiciário pelo apontamento venenoso de coparticipes desfrutadores, no passado, de igual mesa repleta de iguarias degustáveis no segredo das tocas nauseabundas. Que coisa feia! Paralelamente, positiva-se legislação permitindo que o agente da lei, o mocinho, o representante da parte boa da comunidade, seja introduzido na seita criminosa, praticando as mesmas infrações penais, sinistras até, ocultando-se em iguais arvoredos ensombrecidos, mastigando e deglutindo as mesmas drogas viciantes, tudo sob a explicação de ser necessário, mais tarde, derruir a associação delinquente. Que horrível perda da capacidade de sopesar os princípios éticos norteadores da perseguição, não fosse isso apenas o título introdutório da violação do segredo profissional do advogado, do médico, do padre, dos ministros de qualquer profissão religiosa, tudo para o fim de se facilitar a investigação. Enquanto tais desvarios se concretizam diariamente, setecentos e poucos mil advogados contemplam tudo em silêncio, sob as lideranças mornas de derrotados e vencedores, esperando uns e outros que alguém faça o que ninguém faz, pois todos e cada um se contentam com as migalhas deixadas àqueles voluntariamente postos em servidão. Dois meses atrás, aos quase oitenta anos, o escriba participou em pé, durante duas horas, de julgamento no Órgão Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Poderia falar sentado, se quisesse. Não pôde, pois não há assento à tribuna. Sucede o mesmo no Superior Tribunal de Justiça, no Supremo Tribunal Federal e em muitos outros colegiados do país. Parece problema insignificante. Não é. Põe-se entre as questões mais relevantes da advocacia brasileira, colocando-se os defensores em posição absolutamente inferior a todos os outros partícipes. Pior que isso, não há quem reclame. Nenhum dos vinte e sete líderes maiores da advocacia brasileira bate o pé no chão e exige respeito à beca. A hora passa. Setecentos e trinta e poucos mil advogados veem seus telefones grampeados, seus escritórios devassados, sua correspondência apreendida, seus diálogos nos parlatórios bisbilhotados, suas reivindicações desprezadas e seus direitos postos nas cuspideiras do Poder Judiciário. Olham tudo isso e se aquietam, esperando que a profissão se mantenha nobre a poder de um milagre qualquer. Dentro de tal perspectiva, vem o Natal e termina o ano de 2012. O escriba, de qualificação, tem apenas a idade provecta e as cicatrizes de batalha doendo a cada violência praticada contra a advocacia brasileira. Não é a hora e vez de Augusto Matraga e também o tema não se ajusta ao Triste Fim de Policarpo Quaresma. Ainda há, nas veias do velho escrevinhador, energia suficiente a manter os braços vivos no uso do chicote. Pecados tem ele, é certo, todos confessados e nunca servindo a ocultamento sob o madeirame dos cancelos. Que venha o ano-novo e se mantenha pujante a guerra santa. Parece ser a luta de um só mas, sendo embora o refluxo da solidão, vale a pena o combate. Ao resto, se e quando mantido nas alfombras da conformação, fiquem as batatas. Não se trata de saber quem vence, mas de quem mantém acesa a rebeldia à escravidão.

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