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Para não falarmos no “Mensalão”, fale-se no “Fantasma da Ópera”

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Um velho advogado criminalista sempre tem dilemas maiores para definir eticamente. Em princípio, um cirurgião pode comentar qualquer tipo de intervenção no corpo humano, mas o paciente é de outro, convindo notar que há prerrogativas pertencentes a quem segura o bisturi, incluindo-se o respeito de terceiros pela direção e profundidade dos cortes na barriga do freguês. Assim, as coisas ficam difíceis pois, em sentido jurídico, o chamado “Mensalão” é a maior intervenção posta em concreto no panorama geral da Jurisdição brasileira. Vem, com certeza, um apetite muito grande no apontamento das manobras e indicação de opções, porque o processo penal, independentemente das almas, sofrimentos e restrições possíveis à liberdade de uns tantos, é um jogo sofisticado, valendo tudo, desde que dentro do panorama legislativo posto a viger. Dentro de tal particularidade, não é bom meter a colher nas frituras de outros cozinheiros. Estes não gostariam, a menos que houvesse um banquete no qual todos fossem convocados a colocar uma pitada de tempero. Não é o caso. Assim, fale-se de infrações cometidas no exterior, ou melhor, nas entranhas do balé Bolshoi, famosíssimo é certo, quer pela qualidade dos bailarinos, quer mesmo pela especialidade na corporificação de obras célebres vistas no mundo por milhões de pessoas. Ali, homens e mulheres, todos esbeltos e com musculatura sofisticadamente desenvolvida, dançam na ponta dos pés, elas com aqueles saiotes farfalhantes, eles vestindo collants expondo apenas as sinuosidades do arcabouço físico. Por trás daquilo tudo, bailam também afetos, ódios, invejas, ciúmes, amores de cama e fora de cama, abraços entre pessoas do mesmo ou do outro sexo, como se fossem comportamentos espelhados: na visão primeira, a ribalta; na segunda, as sombras voejando no entrecruzar dos maus eflúvios. Assim, Pavel Dmitrichenko, competente bailarino da companhia, mandou jogar ácido no diretor do balé, provocando-lhe a perda da maior parte da visão de um olho e 20% do outro, não se contando o resto do rosto, que ficou deformado. A obtenção desse resultado terrível foi lançada à responsabilidade de um ex-preso chamado Yuri Zarutsky. Condenaram-no a dez anos. Um motorista, chamado Andrei Lipatov, tomou quatro anos. O bailarino, durante o julgamento, afirmou que concordara com a ideia do ex-detento de ferir o diretor, mas nunca como o intento de atirar ácido na face do desafeto. Acentuou, também, que fora preterido na escolha das melhores obras do Teatro.

No final das contas, o diretor lesionado, Sergei Filin, sofreu inúmeras cirurgias plásticas na região afetada, mas o mal está feito. Ácido é ácido, bastando lembrar constituir, tal atividade, uma das práticas da velha máfia napolitana, visando-se, maior parte das vezes, familiares dos inimigos.

Curiosamente, mas sem haver adequação lógica estrita, a conduta lembra “Le Fantôme de l’Opéra” (“O Fantasma da Ópera”), obra publicada originalmente em 1910 (Gaston Leroux) e depois vertida para o teatro e cinema. Neste, grandes atores fizeram o personagem principal, cuidando-se de espetáculo visto por mais de cem milhões de espectadores. O próprio cronista já o viu, na Broadway, anos atrás, assustando-se com acidente pré-fabricado e não esperado pelo público. Coisas da vida. Passado não volta, mas fica na memória.

O texto primitivo se refere à Ópera de Paris, com seus subterrâneos morféticos. Ali vive um fantasma fisicamente deformado no rosto, escondendo-o sob uma máscara. Há, como sempre, uma heroína, de nome Christine, levada às profundidades pelo espectro. Por aí vai, até o desenlace. Não vale a pena contar o resto. O leitor, se quiser, vá procurá-lo.

O perigo dessas rememorações é o contágio ou a imitação, na medida em que a imprensa começa a cuidar do episódio. Assim aconteceu com o “caso Nardoni”, só para dar exemplo. Lá atrás, quase cem anos antes de “O Fantasma da Ópera”, Flaubert publicara “Madame Bovary”, caso de vitriolagem, resultando em condenação criminal e um monte de suicídios praticados à moda por mulheres europeias. Aqui, a condenação de Pavel Dmitrichenko tem uma aura de romantismo descamisado, sendo necessário notar que pouquíssima gente (o cronista se inclui no grupo) conhece o subsolo do Teatro Municipal de São Paulo. A bem dizer, nem há, no prédio projetado por Ramos de Azevedo, subterrâneos enobrecidos a preservar, mas existe, seguramente, um ou outro segmento a ser visitado. Coisas da velha São Paulo. De qualquer forma, um fantasma não conseguiria esconder-se ali por muito tempo, porque as cercanias contêm poluição muito grande. Para terminar, é bom dizer que a vetusta capital paulista está repleta de buracos muito pouco visitados, à maneira da onipresente Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Havia, abaixo do pavimento primeiro, recantos divisáveis por um velho cuidador, morto há muito tempo, de apelido “Chico”. Este era capaz de andar no escuro lá embaixo. O cronista sabe disso. Quem mais o sabe? Apresente-se. Será bem recebido. Talvez houvesse, no conjunto, um fantasma, não da Ópera, mas de Julio Frank. Bem o tragam as histórias do passado.

*Corrija-se: O “Fantasma da Ópera” passa-se na “l’Opéra de Paris”.

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