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Um delinquente psicopata ou um torturador racional

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Aparece na imprensa de hoje, 21 de março de 2014, notícia de que Paulo Malhães, coronel reformado das Forças Armadas, comparecendo e prestando depoimento perante a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, acentuou friamente que participava das manobras e manipulações dos corpos de torturados mortos, cooperando na extração das arcadas dentárias, decepamento de dedos e evisceramento. As duas primeiras intervenções evitariam a identificação. A última, qualquer estudante de medicina legal sabe, faria o corpo permanecer sob a superfície numa movimentação submarina, sendo arrastado pela corrente. Evidentemente, um médico legista faria atividade assemelhada, se e quando quisesse e sem emoção, em tese, usando aquelas bandejas existentes nos serviços médico-legais universalmente parecidos. Aliás, em “Caranguejo-Rei”, romance policial escrito alhures, um auxiliar de autópsia se recusa a abrir uma jovem defunta, atirando o bisturi sobre a mesa de seu chefe, velho e encardido anatomista. Já se viu exame necroscópico, na mocidade, em curso orientado pelo eminentíssimo professor Flamínio Fávero. Havia um túnel ligando o Instituto Oscar Freire ao Cemitério do Araxá. Entendia-se que estudante de direito precisava assistir àquilo (autópsia), para sentir e saber, no fim das contas, como o corpo humano podia ser trabalhado na intimidade. A preleção médica aconteceu, repita-se, faz cinquenta anos. Suportou-se estoicamente aquilo, porque o espectador pretendia ser criminalista e todo advogado criminal deveria ser submetido àquela prova de resistência, uma espécie de passagem para a vida adulta, um teste, à maneira do que faziam os silvícolas quando os adolescentes queriam tornar-se guerreiros. Aquele curso demorou quase um ano, mas o cronista acorda de vez em quando, nas madrugadas, à lembrança do horror nunca olvidável.

Vem-se defendendo, insista-se, por amor à doutrina do direito penal e respeito à jurisprudência pátria, que a lei de anistia impediu e impede a apuração de infrações penais cometidas lá atrás, ao tempo da ditadura. Em suma, não haveria o que fazer. Por outro lado, ainda em obediência a posição clássica, aquilo tudo estaria prescrito. Há, é certo, esforço desesperado de alguns setores no sentido de obter razões para investigações atinentes às espécies, mas a assunção de posições positivas seria política sim, mas não enfrentando vantajosamente a lei e a doutrina, não significando, é claro, que isso não possa vir a acontecer.

Se a posição individual dificulta o reconhecimento da possibilidade de instauração de processo criminal para punir monstruosidades assemelhadas àquelas confessadas, um fundamento emocional leva o cronista ao oposto: a repugnância gerada pelo depoimento do ex-coronel Paulo Malhães é tanta que dá mesmo uma vontade enorme de violar qualquer convicção jurídica contrária a levar o homem a pagar o preço do que fez, não só por ter feito, mas pela absoluta falta de censura interna impeditiva de contar suas façanhas. Cuida-se de espécie de personagem mórbida como aquela pontificando no filme “O Silêncio dos Inocentes”, em que o protagonista morde e mastiga a cara do outro, dilacera-lhe o corpo e prepara um patê com porções de miolos colhidos da parte superior do crânio da própria vítima, após separar cirurgicamente a calota. Que confissão nauseante. Que posição diabólica, satânica sim, ou, quiçá, concretizada por criatura ensandecida a ponto de perder a capacidade de se envergonhar de seus gigantescos pecados. Ou então, ainda prenhe de furor psicopático, levado o confitente a denunciar seu comportamento a fim de ser apedrejado pelo mundo inteiro, pretendendo ser castigado por lapidação enfurecida da cidadania. Em princípio, o noticiário posto na imprensa brasileira e, quiçá, estrangeira, parece mentiroso, não se tendo antecedentes no fato a não ser numa fantasiosa atividade de “Jack, o Estripador”. Depois de admissão dessa natureza, inexistindo possibilidade de repressão penal, restam ao personagem as alternativas de, em primeiro lugar, expor-se em praça pública (seria esta a intenção?), alardeando seus feitos escabrosos, ou aquela de se esconder na caverna mais pútrida e sombria, esperando não ser encontrado e reconhecido. Há uma terceira. Existe quem a assuma, o que é irreversível, nas circunstâncias, porque a escuridão suprema não dirá a que virá.

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