Home » Ponto Final » Não só de urânio vive o nordestino

Não só de urânio vive o nordestino

A advocacia criminal tem, na vida dos mais antigos, multiplicidade de exemplos abrangendo quase todas as atividades humanas. Aquilo vai ficando nos arquivos. Vez por outra é retirado porque encontra, no futuro, comportamentos assemelhados. O escriba se lembra de defesa feita, muitos anos atrás, de fazendeiro acusado de implantes de hormônios femininos em orelhas de bois destinados à engorda. Aquelas substâncias eram diluídas vagarosamente. O gado ganhava corpo e, segundo se afirmava, ficava com a carne mais macia. Sabia-se qual o gado inseminado com aquela substância, porque num certo sentido o quadrúpede “virava a mão”, ou, em outros termos, manifestava comportamento gracioso. Havia efeitos comunitários da absorção das cápsulas (bullits), porque o nordestino, vaidoso da masculinidade, pensava muito antes de comprar carne no açougue das redondezas. Em suma, a compra e venda daquele hormônio eram proibidas.

A lembrança vem rapidamente enquanto se lê, no jornal “O Estado de São Paulo”, de 22 de agosto, reportagem sobre contaminação de água na região de Lagoa Real, sertão da Bahia. Existe por lá mina de urânio, a única explorada em toda a América latina. A empresa extratora é uma estatal federal. Aquela instituição sempre negou qualquer contaminação, durante quinze anos. Investigações feitas atestam que a água extraída de poços perfurados no local exibia alto teor de urânio, com percentagem mais de quatro vezes superior ao limite permitido para o consumo humano.

Nenhuma providência foi tomada durante mais de sete meses, vindo a fazê-lo a empresa com grande retardamento. Famílias que usavam aquela água ficaram evidentemente preocupadas. Um morador, de nome Oswaldo, manifestara desconfiança, usando a água só para lavar as coisas. Prevalecia-se, com mulher e filhos, das cisternas existentes no local.

A estatal INB acentuou que o poço contaminado não se colocava em área de influência de atividade da empresa. Portanto, não havia monitoramento. Informou também que aquela região era naturalmente uranífera.

No fim das contas, a água daquele poço está envenenada, ou por causas naturais ou por interferência da indústria extratora de urânio. Evidentemente, um copo de líquido não deve levar a resultado pernicioso, mas a ingestão contínua, o fornecimento a animais domésticos e a utilização nas plantações constitui atividade que, na somatória, produz resultado dramaticamente ruim, contribuindo, inclusive, para o aumento de casos de câncer.

A denúncia feita pelo jornal já identificado deve produzir resultado eficaz. Resta indagar se a estatal mencionada conhecia a situação, deixando de assumir providências indispensáveis à solução do problema.

Existe no folclore brasileiro parlenda extremamente apropriada à situação: “Lá em cima daquele morro tem um copo de veneno. Quem bebeu morreu”. Comparativamente falando, a hipótese de envenenamento é muito mais séria que a prisão dos suspeitos da lava jato. O urânio radioativo mata. Basta, não é preciso dizer mais.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e seis anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

Deixe um comentário, se quiser.

E