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Uso de algemas (Cuidado com o andor)

O Supremo Tribunal Federal acaba de emitir acórdão em que anulava interrogatório de Réu concretizado perante juiz que o inquiria enquanto o interrogado estava em pé, à frente do magistrado, mas com as mãos algemadas às costas. Este escriba vem protestando contra tal comportamento, jurisdicional ou não, há vários anos, fazendo tal crítica, segundo pensa, em solidão, pois não há quem o acompanhe, ao menos abertamente. O cronista chegou a transcrever, inclusive, antigo escrito de Sérgio Marcos de Moraes Pitombo (O uso de algemas), no qual aquele eminente professor de Direito Processual descrevia as oportunidades permissivas de tal atividade. O assunto volta à berlinda quando, nas diversas atividades repressivas da Polícia Federal, os capturados aparecem em fotografias muito nítidas, aliás, mãos devidamente amarradas atrás, sem poderem os conduzidos, sequer, abaixar as cabeças para escondimento do rosto ou, em alternativa, coçar o nariz, impedindo, quiçá, a picada de um mosquito carregado do vírus zika, havendo a possibilidade, também, de investida de uma pulga morfética habituada a cárceres menos impecáveis. O narrador, cinquenta anos atrás, frequentava as carceragens de múltiplos distritos policiais, sentindo o cheiro – ainda se lembra bem – de água misturada a creolina, havendo resquícios de odor de comida requentada (o famoso jumbo). Dir-se-ia que a pretensão é de outorga de um tratamento sofisticado aos presos – ou à família destes. Nem tanto o céu, nem tanto a terra, diz o brocardo mas, deixando-se de lado tais preliminares, trabalha-se sobre aquilo que se vê nos jornais, ou seja, em grande maioria, o tratamento outorgado aos indiciados portadores de alguns privilégios, cuidando-se de investigados nas operações cujos nomes vão desde a antiguidade greco-romana aos sertões nordestinos. Evidentemente, o contingente perlustrado pelos policiais federais hodiernos, no Brasil, é intelectualmente diferenciado, havendo, inclusive, muitos pós-graduados, sendo que a unanimidade dos delegados é formada em direito, estendendo-se a graduação àqueles ocupantes de atribuições ou cargos subordinados. Há, portanto, convivência diferenciada entre os encarregados da investigação e os investigados, sendo necessário não pensar nas detidas, umas e outras convivendo com os suspeitos principais.

A lembrança de tais minudências exsurge, repita-se, quando se examina uma ou outra foto de conduzidas à presença de juízes ou mesmo aos xadrezes destinados a prisões temporárias ou preventivas. Tocante a tais criaturas, há três categorias: a) – Companheiras dos investigados na cama, na mesa e nas atividades externas; b) – Apenasmente domésticas, cuidando dos filhos, da manutenção do domicílio, do marido ou companheiro, enfim, mas inscientes das atividades dos seus homens; c) – Filhos e filhas, uns em idade pré-adolescente, outros já taludos, frequentando universidade; d) – Inexistindo as três primeiras categorias, sobram pais e mães dos capturados, pois usualmente há ascendentes sobrevivendo.

Certa vez, muitos e muitos anos passados, o rabiscador defendeu e absolveu um homem diferenciado, processado em uma época em que operações repressivas não tinham os atuais nomes faustosos. O processado gerara filhos (mocinhos, bandidos, inocentes, culpados, mafiosos, traficantes, santos e santas criam descendentes). Aliás, a reprodução da espécie é uma das tarefas fundamentais do mundo animal. Crianças não têm coisa alguma a ver com os pecados de quem as pariu. Vai daí, o cliente a quem o escriba se referiu tinha filho em colégio bem posto. Estava o moleque no pátio, durante o recreio, quando os outros petizes começaram a persegui-lo (hoje isso tem o nome de bullying). Traziam nas mãos uma página de antigo e pesado matutino paulista. Ali, em caixa alta, o título: aprisionado um dos acusados de apropriação de dinheiros públicos. Final de história: o menino tinha a chamada “doença azul”. Beijou a poeira do campinho de futebol. Foi enterrado no dia seguinte, em caixão branco. O pai, insista-se, foi absolvido, mas não adiantava mais. Ganhou a liberdade e perdeu a criança.

As crônicas, às vezes, começam de um jeito e acabam do outro. Iniciam-se com a visão de uma foto posta em matutino robusto e terminam no cemitério. Quando o morto é suspeito de praticar um dos mais graves crimes que a humanidade contempla, ou seja, furtar dinheiro do Estado, o choro no necrotério é raro, pois o povo afirma que o resultado é merecido. Talvez seja, embora, hoje em dia, o homicida, com um bom advogado, não sendo reincidente, receba uns quatro ou sete anos de reclusão, dos quais cumpre no máximo dois anos e pouco. Daí, matar alguém fica abaixo de apropriação do ouro posto sob o trono. Havia, também em época remota, um jurista muito sarcástico que, quando provocado, dizia, rindo pelo canto da boca: se eu lhe mordiscar alguma rapariga muito querida, você vai ficar zangadíssimo comigo. Se me pega no ato, pode disparar-me um tiro. Depois, começa a pensar que não cuidou bem da moça, não lhe deu carinho, não cumpriu suas obrigações de estilo, dedicou-se a outros amores e, no fim, ao me encontrar numa esquina, me perdoa, constrangidamente. Talvez até me abrace. Entretanto, se eu lhe pedir dinheiro e não devolver, você vai ficar meu inimigo o resto da vida!

O assunto parece ridículo, mas não é. As condenações advindas da Vara Federal de Curitiba são pesadíssimas. Alguns afirmam que merecidas, mas severíssimas são. Diga-se, porém, que não se está a censurar o juiz que é, hoje, ponto de referência para toda a magistratura brasileira. Não, apenas se dá relevo ao fato de se precisar cuidar dos conduzidos e capturados, nisto despontando as mulheres, com respeito à legislação atinente à espécie. Impedir-se o homem ou a mulher de movimentar braços e mãos enquanto empurrados por ruas e calçadas é, além de ilegal, ato de satanismo judicial, porque seres humanos e bichos falam com as mãos (animais inferiores movimentam as patas). Dentro de tal contexto, quando os algozes carregam os e as investigadas em direção ao fórum, ou à carceragem, com toda a imprensa em volta, cobiçosa sim, porque é este o papel do repórter, não pode amarrar às costas as mãos da moça ou as manoplas do capturado, a não ser que se cuide de tresloucados. Aí, o remédio é a camisa-de-força. A lei o impede. O Código de Processo Penal o proíbe. Diga-se, por fim, que todo preso tem dono. O proprietário do condenado é o juiz. Tem seu corpo e sua alma. O magistrado não pode deixar de lado tais fenômenos executórios porque, em suma, mandou prender, ressalvadas as exceções de estilo. Precisa manter seus jurisdicionados dentro do organograma legislativo atinente à espécie. Tal obrigação se estende aos captores e àqueles direta ou indiretamente envolvidos na andadura dos reclusos. O escrevinhador não é atrevido. Ao contrário, esconde-se sob a toga, entre outros, do Ministro Fachin. Não transcreve o texto. Quem se interessar, vá à Reclamação número 22.557-RJ. A Suprema Corte vê tudo, lê os jornais e não fecha os olhos. Guarda as imagens sádicas postas abaixo das manchetes. Mais dia menos dia, vem a resposta: soltem os braços dos presos, pois o ser humano precisa, no mínimo, ver suas mãos. Estas servem a contar moedas furtadas, sim, mas também enxugam lágrimas ou se unem em súplica para que a lei seja respeitada. Eis aí.

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