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Policia Militar cega outro manifestante

Juiz condena jornalista em honorários 

(Quem semeia rabanete, colhe rabanete)

 

A sentença do magistrado Olavo Zampol Júnior

As razões de apelação

Excelentíssimo senhor Doutor Juiz de Direito da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo – SP:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sérgio Andrade da Silva, por um de seus advogados, não se conforma com a decisão prolatada nos autos da ação de indenização por danos morais promovida nessa Vara e respectivo Cartório, sob número 1006058-86.2013.8.26.0053, contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo. Apela ao Tribunal de Justiça, buscando a procedência da ação. Oferece razões em anexo. O apelante reivindica o reexame da decisão, no prazo de 05 (cinco) dias, facultando-se ao eminente Magistrado exercer o juízo de retratação, nos termos do § 7ͦ do artigo 485 do Código de Processo Civil.

São Paulo, 29 de agosto de 2016

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Paulo Sérgio Leite Fernandes

Advogado OAB-SP 13.439

Processo n° 1006058-86.2013.8.26.0053

Apelante: Sérgio Andrade da Silva

 

 

 

 

         Eminentes Desembargadores:

 

1) – O cultíssimo Juiz acentua inexistir prova de o autor ter sido ferido por bala de borracha. Independentemente de inexistir, no contexto, qualquer elemento a desdizer a assertiva do autor, ponha-se o Magistrado em atenção: se prova não houvesse, a inexistência da mesma teria sido provocada pelo próprio Magistrado enquanto julgava o processo conforme o estado da lide, decidindo antecipadamente. Em outros termos: se comprovação não há, é porque não se deixa o autor fazê-la. Que paradoxo terrível surge nos autos… bastaria tal raciocínio para invalidar plenamente a postura processual do ilustríssimo Juiz. O Apelante se apresentara com ferimento exibindo todas as características de perfuração por projétil disparado pela polícia. Dispôs-se a arredondar a pretensão com prova testemunhal, exibindo, inclusive, rol de testemunhas. O lancetamento da tramitação deixa o Magistrado, realmente, em posição dialética muito ruim. Na verdade, o Juiz acentua: “– Mesmo que houvesse provas de que o ferimento experimentado pelo autor tenha sido provocado por bala de borracha disparado pela polícia, ainda assim, não haveria de se cogitar da pretendida indenização”. Mais: “– com isso está-se a dizer, ainda em que se permitisse em dilação probatória fazer prova em torno desse fato (inconclusivo pela perícia) o resultado final seria o mesmo. Daí porque não se amplia a prova já produzida, mesmo buscando o autor resposta a quesitos (fls. 334).”

2) – Trocando-se em miúdos a decisão, o Juiz quer dizer que, mesmo comprovado o tipo de instrumento vulnerante lesivo ao autor, a ação seria julgada improcedente, porque, “ao se colocar o autor entre os manifestantes e a polícia, permanecendo em linha de tiro, para fotografar, Sérgio se colocou em situação de risco, assumindo-se, com isso, as possíveis consequências do que pudesse acontecer.” Parte o eminente Magistrado, no contexto, da alternativa concernente à licitude do uso pela polícia das cognominadas balas de borracha. O autor, na inicial, demonstrou que tais projéteis podem matar. E podem, enquanto não matando, produzir lesões gravíssimas nas criaturas alvejadas. Parte o Magistrado, então, de premissa consistente no fato de o Estado poder usar contra o povo, em situações análogas àquela visualizada, armas mortais, por destinação específica ou derivada. Reside nisso, Egrégio Tribunal, o chamado ponto nodal da questão, ou seja, pode o preposto da autoridade, enquanto reprime manifestação popular composta, inclusive, por dezenas de estudantes, disparar contra o populacho, fazendo-o à altura do tórax e∕ou rosto, sem prudência maior? Há indagações outras: o conflito poderia ser pacificado por medidas outras menos lesivas? Os policiais haviam sido instruídos, antes, sobre precauções mínimas atinentes à direção dos disparos? É o Estado, na contingência, responsável objetivamente pelo desastrado uso dos projéteis já descritos? O Juiz refere que o autor se pôs na linha de tiro. O que é linha de tiro? Consta dos autos que foi atingido, embora abrigado numa banca de jornais. Isso consta de documento posto nos autos (Doc. V da Inicial).

3) – Assevera o Juiz, na decisão, que o autor se intrometeu na linha de tiro, assumindo solitariamente a responsabilidade pelo evento. Sérgio estava cumprindo atribuição profissional. Cobria o desacerto em tramitação. Não fosse ele levado a tanto, cuidando-se de transeunte ou até mesmo de interveniente, a situação seria a mesma: afirmar-se-ia que os estudantes em atividade no local não deveriam estar ali. Mais ainda: nenhuma revolta ou manifestação popular poderia acontecer dentro de democracia implantada, correndo os acidentes por conta e risco dos manifestantes, na medida em que a polícia ali estaria exatamente para impedir ou obstar as reivindicações populares. O raciocínio usado na sentença não é bom. A legitimação de tal pressuposto adviria de estimativa absolutamente idônea concernente à licitude do uso de bala de borracha direcionada acima da linha da cintura, visando ferir – e a destinação é obviamente de produzir ferimentos – os circunstantes, sendo indiferente o direcionamento da ou das balas. No fim das contas, o lesado foi um fotógrafo, mas os aspectos jurídicos não se modificariam se fosse um faxineiro de condomínio ou uma dona de casa carregando um bebê. O cultíssimo pretor afirmaria, com certeza, que a mulher, estando ali, estava assumindo a plena responsabilidade quanto aos fatos, mesmo que o infante tivesse o cérebro destruído pelo impacto do projétil.

4) – O desenvolvimento de premissas pode levar a raciocínios paradoxais e mesmo sofisticados, pois o jornalista não deveria estar lá, os estudantes não deveriam estar ali, transeuntes precisariam afastar-se e a cidadania, enfim, deveria estar ausente do contexto, para que nenhum dos segmentos assumisse os riscos de ser ferido. Chegar-se-ia, então, a conclusão terrível: ausentando-se o povo da manifestação, porque ali não deveria estar, comício não haveria, por ausência de populares. Daí, o Estado seria dispensado de mandar seus carabineiros a atirar, isto sim, em linha lesiva de órgãos nobres…

5) – O jornalista Sérgio Andrade da Silva pagou caro por estar trabalhando. Ficou cego de uma das vistas, prejudicando-se, inclusive, sua visão tridimensional (é fotógrafo). Além disso, foi condenado em honorários advocatícios. Seria simbólica a pena, mas o simbolismo machuca, às vezes, tanto quanto a realidade. Diga-se, a título de encerramento, que Sérgio perdeu parcialmente a visão, não deveria estar trabalhando, precisaria ter presumido que a polícia poderia matá-lo e a muitos outros e que, em consequência, deve arcar pelo resto da vida com a perda da visão. Não só isso: virou um “cegueta”, podendo ser objeto, inclusive, de zombaria de terceiros. É de Eça de Queiróz, se a memória não falha, o conto em que a mãe, permanentemente ridicularizada pelo filho, é obrigada a lhe contar, anos mais tarde, que o rebento a cegara com um garfo de cozinha, enquanto menininho. Sérgio tem filho pequeno. Crescendo, o moleque há de querer saber porque o pai é deformado (olhos de vidro envesgam ou caem) e, aliás, custam caro. Daí, então, Sérgio há de explicar ao descendente que a polícia do Estado de São Paulo o feriu com disparo de arma de borracha, vazando-lhe um globo ocular. À pergunta seguinte, o apelante precisará explicar que havia sido condenado, em razão daquilo, “a pagar honorários ao Governador”. Não é bem assim, mas é um jeito comum de explicação…

6) – Melhor teria sido decisão advinda da 3ͣ Vara da Fazenda Pública do Estado do Rio de Janeiro (Processo número 0267917-93.2013.8.19.0001). O Poder Judiciário, na Guanabara, responsabilizou o Estado por fato análogo. Houve acordo a tempo certo, arcando o Poder executivo com despesas atinentes a permanente tratamento médico da autora (Docs. Anexos).

         7) – Conflitos assemelhados àqueles versados nos autos se resolvem, na maioria das vezes, com os chamados “canhões d’água”. O líquido esfria os ânimos e não produz resultados iguais àquele sofrido pelo apelante.

8 ) – Aguarda-se provimento ao apelo, acrescendo-se um último argumento: o eminente Juiz, travando o curso da ação, deixou em todos um gosto amargo de fel. Seria hipótese de invalidação do decisório, permitindo-se ao apelante a demonstração plena da imprudência, para não se dizer de dolo eventual, do ou dos policiais que utilizaram o instrumental mortífero. Pleiteia-se, na medida do provimento, a condenação do Estado-Réu em custas e honorários advocatícios, acrescidos ao valor principal.

 

São Paulo, 29 de agosto de 2016

 

 

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Paulo Sérgio Leite Fernandes

Advogado OAB-SP 13.439

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