Entre pandemias, as ideias condicionantes, os acidentes de percurso e as praias de Santos

 

Paulo Sérgio Leite Fernandes

 

 

     Os leitores menos atentos, ou pouco acostumados à mente do escriba, estariam a pensar que não há uniformidade no título, pois mistura uma série de pressupostos desarvorados. É assim e assim não é. Nossos cérebros, desde o mais rústico até o altamente sofisticado, têm características vistas ou examinadas em qualquer manual de psicologia. Explique-se: forma-se o raciocínio, teoricamente, numa relação de causalidade ligando direta ou indiretamente os conceitos, suportando uns a derivação para outros, num esquema que poderia, ausente outra explicação, ser qualificado “par cascade” ou por degraus, ou ainda, em se preferindo, “por cascata”, num curioso escalonamento poucas vezes posto à reflexão do homem médio quando, em síntese, um raciocínio primário dá origem a outros, não necessariamente trazidos a lume na imediatidade, mas surgindo, diga-se bem, até mesmo meses ou anos depois. Parecerá ao leitor, em princípio, que o escriba perdeu a inteligência do texto, mas assim é, pois o intelecto humano desacompanha as perspectivas objetivas do “entrementes”. Uma criatura adulta pode trazer ao presente, cerebrinamente, acontecimento a lhe impressionar o raciocínio enquanto era um infante, misturando-se então o passado, o presente e, quiçá, o futuro, porque ali, entremeando o todo, funciona a imaginação. Pense-se num exemplo vindo à reflexão do escriba sob o influxo de acontecimento recentíssimo ligado a tragédia ocorrida no “cânion” situado na Lagoa de Furnas, em Capitólio, Minas Gerais. O impacto daquele desastre foi grande, emocionando todos aqueles postos a conhecer os acontecimentos. Já dizendo respeito ao cronista (aqui vai a explicação), veio a este, em derivação causal, fato ligado à adolescência dele, enquanto navegava num delicado veleiro pelas ondas do mar santista, proximidades de uma ilhota chamada “Urubuqueçaba”. Uma tardinha calma, num verão alegre, uma aragem misturada no sossego que só os praianos sabem sentir na pele amorenada que os iatistas costumam manter. Acontece que o marinheiro se esqueceu das horas e a escuridão chegou, o mar agredindo quase tudo e as rochas no restante. Não havia possibilidade de retorno. O marujo precisou intrometer-se num vazio no meio das pedras. Ali ficou, porque o encaminhamento seria muito arriscado. Uma noite sem lua, muito frio, não havia cabine no barco, só a vela com a qual o navegador se cobriu. Ainda não havia celulares. Ouviam-se barulhos aqui e ali, produzidos por pequenas ondas e pelo arranhar dos bichos, pois todos sabem que caranguejos, alguns bem grandes, têm hábitos noturnos. Ciscam alhures, assustando, inclusive, os frequentadores do areal. Surgiram os temores, sabendo-se que a falta de luz é má conselheira, excetuando-se uma ou outra hipótese enluarada. Mas é outra conversa…

         Já se vê a relação de causalidade entre o drama atual e aquela ocorrência primitiva, misturando-se a plenitude. O imprudente aventureiro aquático só conseguiu sair daquilo quando o dia começou a surgir. O barquinho tinha nome. Todas as embarcações têm nome. Saíram dali os dois, o barqueiro e a barquinha, indenes, ladeados por lanchas mandadas a procurar o sumido, porque este, obviamente, não passara aquelas horas em casa.

         Perceba-se a comprovação prática do raciocínio posto no introito da crônica: um episódio dantesco envolvendo a proximidade das rochas pontiagudas, a morte de uns, o salvamento de outros e o desencravamento de episódio menos grave, é certo,  acontecido ao jovem navegante, mas automaticamente trazido à memória, num relevo inafastável, misturando-se, agora, na saudade do barco, das praias santistas, da juventude e do mormaço deixado pela areia ao contato com os pés descalços do intrépido mas imprudente rapaz.

         Termine-se. Não se vá adiante. O veleiro existiu até mês passado. Foi desmontado a serrote, por determinação do dono. Preservou-se-lhe somente a identidade, porque a identidade sempre fica, aquela do navio ou mesmo da criatura. O resto é resto. Em pesquisa no Google, há cerca de dois milhões de verbetes correspondentes à denominação do frágil catamarã. É quanto basta. E la nave va.

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