Advogado compondo os Tribunais – O beija-mão
* Paulo Sérgio Leite Fernandes
Advogados compondo os Tribunais – O beija-mão
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Em duas oportunidades, muitos anos atrás, tive a experiência de pretender compor, nos Tribunais, o 5° Constitucional reservado a advogados. Cuidando-se de assunto presumivelmente conhecido por todos, não é preciso dizer que a quinta parte dos órgãos colegiados de distribuição da justiça – e alguns outros, aliás – deve ser composta por advogados. Isso, em função de lei hoje vigente, começa com a remessa de listas sêxtuplas enviadas aos Tribunais pelas Seccionais da OAB ou, em certas hipóteses, pelo Conselho Federal. Seis profissionais são escolhidos. Daquela meia dúzia são separados três, em votação pelos Órgãos Especiais dos Tribunais referidos, indo a sanção dos governadores ou do Presidente da República, exceção feita, é claro, ao Supremo Tribunal Federal. Cuida-se, ali, de escolha livre do primeiro mandatário da nação, submetendo-se o indicado a arguição no Senado. O procedimento, em qualquer hipótese, é muito sofisticado. Dou exemplo próprio: quando, levado por misterioso e ainda não entendido anseio, trinta anos passados, quis candidatar-me a uma vaga no hoje extinto Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, o empreendimento começou dentro de rotina esquisita. Era preciso, em primeiro lugar, ter padrinho; em seguida, havia conveniência (ou até necessidade) de partir para o denominado “beija-mão” (vigendo até hoje). Em princípio, o pretendente, guiado pela mão e, quem sabe, companhia do patrono, visita os gabinetes dos desembargadores optantes por três daqueles mesmos seis apontados pela Ordem. Esqueci-me de dizer que a preferência, entre os advogados, passa, analogamente, por difícil e delicada atividade de obtenção de votação majoritária, cada vez mais complicada, por certo, pois o número de conselheiros, que antigamente não ultrapassava os dezoito (ressalvados aqueles vindos do Instituto dos Advogados, com assento sem eleição), hoje se põe, em São Paulo, em número superior a noventa, se e quando compreendidos os suplentes. Dentro do contexto, o comportamento dos candidatos, na OAB e no Tribunal, é assemelhado: é preciso ter uma sorte qualquer de proteção, havendo excepcionalmente um ou outro que, não só no passado mas também hoje em dia, é convidado insistentemente a compor os Tribunais. Já vi, em cinquenta e um anos de advocacia criminal, duas ou três alternativas no estilo, sabendo-as elegantemente recusadas. E já pude observar, também, um ou outro assentimento dentro do qual o escolhido, enquanto trocando a beca pela toga, mantinha a dignidade de não precisar pedir. Voltando aos tempos da mocidade, disseram-me que era necessário cumprir a tradição de levar aos votantes o pedido, embora com desconforto. Visitei dois ou três, mas a cada solução do compromisso informal retornava à banca cheio de resmungos e humilhação, firmando-se a emoção no fato de não ter perdido, nem lá nem aqui, a vocação de rosnar para o interlocutor, antes de solicitar, transformando a tarefa num preâmbulo de briga e rompimento. Não verifiquei o resultado daquela solitária aventura na casa do vizinho, mas alguém, contritamente, me disse, anos depois, que não obtivera um só voto. Tempos adiante, alguém me levou, a contragosto, a candidatar-me ao 5° Constitucional no Superior Tribunal de Justiça. Admiti, mas com uma condição: se dependesse de visitas reivindicativas, preferiria afogar-me no lago Paranoá, saltando da minha barca fiel (não a identifico, mas toda barca traz o nome de mulher). O Superior Tribunal de Justiça me honrou. Tive boa votação, mas juiz não é mulher de apache, levando porrada e premiando o agressor. Felizmente, hei de morrer advogado, coisa boa, porque a família é muito grande e vencimento de Ministro me deixaria em péssima situação econômica, porque bancos e o sistema financeiro, em geral, não querem saber se o prestamista é ou não magistrado. O crédito, em geral, é administrado pelos pais de Rebecca, merecendo lembrança o episódio em que Ivanhoé precisava de empréstimo para defender as cores da rainha saxônica, vendo-o recusado pelo usurário de York. Voltando-se ao tema, o grande problema do 5° Constitucional, em tese, é aquele de transformar um candidato em pedinte, levando-o, com as exceções de praxe, repito, a mostrar as qualidades numa vilegiatura nem sempre adequada ao ministério de origem. Minha implicância, assim, é ainda a marca inapagável do que precisei fazer, embora emburrado no fazimento. Leio nos manuais de doutrina, às vezes, afirmativas no sentido de que o juiz é órgão superpartes. Tenho preocupação, hoje, mais com a tecnobiologia que com o Direito. Aldous Huxley afirmava que nossas glândulas têm razões que a própria razão desconhece. Nascemos, crescemos e morremos dentro de padrões absolutamente individuais. A dor produzida por unha encravada ou vértebra mal disposta (vi Ministro do Supremo votando em pé, por não poder sentar-se), pode ser a diferença entre um julgamento ameno ou conturbado. Magistrados têm amígdala, glândula pineal, epífise, hipófise, pituitária, próstata, suprarrenais, bilhões de neurônios, imenso contingente de sinapses, sumos essenciais transitando continuamente, enfim. Têm DNA ajustando-se no tempo a poder de influxos externos… são máquinas, é óbvio. Não se ajustam permanentemente ao preceito de valer mais a pena, na dúvida, o abraço à chibata. As coisas são assim. Todos são parciais, não faltando parcialidade àqueles advogados guindados ao uso da toga. Já vi, aliás, oriundos do quinto muito mais severos que os magistrados de origem. Paulo virou Saulo, não o contrário. Preferiria agora, após profunda reflexão e o peso da idade, a revogação do permissivo ao 5° Constitucional. Quem sabe, se juiz tivesse sido, disputaria a justiça com a própria sombra. Está acontecendo a Marco Aurélio de Mello, na Suprema Corte, angustiado na tentativa de acertar, às vezes em solidão. Não é privilégio, tal atitude. Constituiria inclusive, para alguns, embaraço à estabilidade na distribuição do Direito. Nas contingências, enquanto vejo as peripécias dos candidatos ao assento, não sei se devo admirá-los pela insistência, ter raiva por também haver tentado (lembrança ruim do que não deveria ter feito), ou dó por uma ou outra tentativa desastrada. Creio que os magistrados de carreira devem ficar por lá, procurando harmonizar, na boa sentença, os defeitos de construção que o corpo humano carrega, impregnando-se de fel a alma de cada qual. Tocante aos advogados, ouço dizer que alguns ilustres profissionais pretendem a Suprema Corte. Melhor seria esperarem o chamado, o convite, o instante. Não sendo isto possível, prossigam numa tarefa mordente que precisa ser um combate e nunca uma peregrinação mendicante.
* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.