O Fisco não perdoa a mediunidade (Receita Federal persegue o doutor Fritz)
* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
O Fisco não perdoa a mediunidade
(Receita Federal persegue o doutor Fritz)***
Há um ditado, vindo da Roma antiga, afirmando: “ – A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. Isso tem realce nos conflitos entre o rei e o divino, sabendo-se que a questão é muito complicada, pois os primitivos tinham seus pajés, Hitler mantinha uma pitonisa de plantão, a Itália dos doges respeitava Savonarola e Rasputin teve influência enorme na vetusta Rússia. Há muita gente ainda carregando cristais ao pescoço, observando os movimentos pendulares daquelas pedras translúcidas. Existem pessoas importantes, na modernidade, atentas diariamente a horóscopos e predições concernentes a dúvidas quanto ao futuro. O ser humano é sobretudo místico, evoluindo desde o medo de passar embaixo de escadas até municiar os olhos do defunto com moedas permissivas do pagamento da passagem ao barqueiro Caronte. No meio da confusão, há as religiões tradicionais e, de certa época a esta data, a multiplicação de confrarias religiosas diversas, montando-se nas esquinas polimorfos templos. Em outros termos, os espíritos ou, em se preferindo, as almas, imperam no vão de cada porta. Não vale a pena, em curtíssima crônica, comentário mais acentuado sobre a ligação estreita do homem com o além, bastando dizer que todos têm seus deuses, sabendo-se do culto greco-romano, lá atrás (muito atrás), aos “lares” ou santos domésticos, honrados em locais apropriados dentro das paliçadas e até dos quintais. Uma velha aia tinha um “Santo Antônio” de barro oculto num nicho da cozinha, mantendo-o junto a um potinho com borra de café. Não se entende o que era aquilo. Dizia-se que funcionava.
Vêm os comentários à leitura de acórdão posto pela 1ª Seção Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região nos embargos infringentes número 1999.51.01.045554-6, ajuizados por alguém cujo patronímico é preservado mas conhecido, acredite-se, no Brasil inteiro sob o pseudônimo “doutor Fritz”. Tinha que ser no Rio de Janeiro. Lá, no entremeio da linha amarela, misturam-se mulheres seminuas, atores de cinema e televisão, favelados diversos, os versos de Vinícius e Tom Jobim, mais Edu Lobo e Francis Hime, não se podendo esquecer os murmúrios de João Gilberto, hoje fazendo eco à filha Bebel, mencionando-se especialmente Chico Buarque, de quem se dizia valer-se do pai mas provando que assim não era enquanto escrevia após a morte de Sérgio Buarque. As más línguas, já que se trata de comentários sobre babalaôs e quejandos, poderiam afirmar cuidar-se de mediunidade na relação entre ambos. E mais nada.
Aconteceu, repita-se, no Rio de Janeiro, no recôndito das ruelas, onde “o malandro do morro é o barão da ralé”, repetindo-se agora o mesmo Francisco Buarque de Holanda. Existe naquela terra, interpretando o passado, analisando o presente e prevendo o futuro um monte de médiuns, pontificando o “doutor Fritz”. Não se sabe se foi ele que operou a sangue frio o ex-presidente João Figueiredo, ao tempo dos eflúvios da ditadura mas, com certeza, um tal de “Fritz” tirou um calombo das costas do general sem verter uma só gota de sangue. Saiu na televisão. Pode ser o atual “Fritz”, um outro “Fritz” ou o antecessor do hodierno, pois há muitos por aí com o mesmo apelido, à maneira de jogador de futebol famoso. Constata-se muito candidato registrado como Kaká. Conheceu-se jogador do Santos Futebol Clube, depois administrador, chamado “Lula”. Deu-se mal adiante. Existem muitos “Lula” nas redondezas, mas presidente só há um. Infelizmente, impossível o registro do apelido no Instituto de Marcas e Patentes.
Retorne-se ao “doutor Fritz”. O Ministério Público Federal do Rio de Janeiro não tinha muita simpatia pela mediunidade, deixando então de aproveitar a possibilidade, remota embora, de descobrir em transes conveniadas a autoria de algumas falcatruas que dizem existir no planalto central. Já se denunciou que o FBI usa paranormais nas investigações. Valeria a imitação, quem sabe, mas os procuradores da república cariocas tocaram uma ação penal no “doutor Fritz” por sonegação fiscal. O médium dava consultas, cobrava e não notificava a Receita Federal sobre seus ganhos. Vai daí, fiados no “A César o que é de César”, os desembargadores federais da cidade maravilhosa, olhos postos no Cristo Redentor, “braços abertos sobre a Guanabara”, apenaram a criatura, fazendo distinção entre religião, seita, credos e pessoas. “Fritz” deveria recolher ao Fisco o sagrado dinheiro do rei. O resto era com Deus.
O acórdão vai em sequência. Há voto vencido. Uma desembargadora respeitabilíssima afirmou ter obtido a cura a custa de manobra mística semelhante. Ocasionalmente o tema estimula reflexão sobre as espórtulas recebidas pelos sacerdotes após confissão, ou dízimos ofertados metodicamente por crentes às igrejas paralelas vicejando na nação. Tem-se a impressão, depois disso, que o Ministério Público precisa, realmente, incursionar afincadamente nessa zona cinzenta existente entre o profano e o sagrado, correndo o risco de perseguir aqueles cultos que, na Bahia, parafraseiam filme personificado pelo heroico James Bond (rememore-se ACM, sempre com seu colar protetor, eficiente, aliás). Há uma cena em que o grão-mestre do “vodu” espeta uns bonequinhos com alfinetes. Aquilo é perigoso. É não mexer com os baianos, alagoanos e nortistas em geral. Existe muita magia naquelas bandas. Da minha parte, à maneira do provérbio espanhol, “Yo no creo em los brujos, pero que los hay, los hay!” (Cervantes). Tocante ao “doutor Fritz”, comece a dar recibos, sem preservar o nome dos consulentes. Imagine-se um sacerdote saindo do confessionário com caneta tinteiro na mão direita, o crucifixo na esquerda e o bloco de recibos no bolso da batina. Os deuses não gostam.
* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.
** Áudio e vídeo
*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.