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As eleições presidenciais e a questão do aborto

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
As eleições presidenciais e a questão do aborto***

Há muito tempo, no mundo e no Brasil, surge episodicamente a rediscussão do problema ético, médico e jurídico correspondente ao abortamento. É preciso dizer inicialmente que a expressão correta é “abortamento” e não “aborto”. Este é o produto da concepção interrompida. Aquele é o ato de abortar. Isso veio do francês. O respeitadíssimo Flamínio Fávero, de quem Odon Ramos Maranhão foi discípulo, já afirmava tal diferença no seu Tratado de Medicina Legal. Não se sabe por quais cargas d’água o autor da crônica, enquanto adolescente, pretendia ser médico. Mas queria, sim. Faz mais de cinquenta anos. Havia poucas faculdades de medicina no país. São Paulo tinha só duas. Naquele tempo, como hoje, a arte médica era privilégio dos muito bem dotados financeiramente, não se desprezando capacitação intelectual diferenciada. O cronista não exibia qualquer das duas qualidades. Encaminhou-se para o direito e, neste, optou pela área criminal e medicina legal. Entende um pouco das duas vertentes. Houve época em que conhecia de cor todos os ossos do corpo humano. Mantinha um esqueleto de plástico em lugar apropriado. Às vezes alguém se assustava com aquilo mas entendia a brincadeira. Tocante a essas extravagâncias, o cronista teve um cliente, cujo nome não importa (conta-se o milagre mas não o santo), que guardava ciosamente os presentes recebidos da noiva, inclusive uma faca com o nome dele gravado. Matou-a com aquilo. Não foi absolvido, mas o conselho de sentença até entendeu a sintonia entre o fio da lâmina e os chifres do rapaz… O abortamento, no Brasil, constitui bandeira de conflito entre candidatas e candidatos à Presidência da República. A pretendente ao cargo de primeira-dama é Dilma, primeira e única, rainha do Brasil? Tenta ficar em cima do muro, consciente de que matar criancinhas pode constituir atributo negativo da presidência, mas o PT parece ter posição liberal respeitando ao assunto. Serra é contra, assimilando os votos dos evangélicos e dos católicos ortodoxos da velha guarda.

Certa vez, num debate havido no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, o cronista precisou enfrentar adeptos do abortamento, não aquele eugênico para salvar a vida da gestante, ou aquele outro resultante de interrupção de gravidez não querida. Dizia-se que as mulheres eram donas do próprio corpo. Na medida em que o bebê se colocava nas entranhas da geratriz, pertenceria à mesma.

O argumento impressiona mas, na medida em que o escrevinhador já não tinha muita paciência para discutir, colocou no chão um bonequinho assemelhado àquele que agora encima o texto e o pisou com bastante energia. O pequenino fantoche, feito de massa, ficou dilacerado. Faltava o sangue, é claro, mas aquela seiva rubra impregnava a imaginação da plateia. Uma das debatedoras, sentindo-se mal, vomitou.

A recordação daquilo tudo deve servir, é claro, a estimular os debates entre a próxima rainha do Brasil e o pretendente Serra. Não será a opção pelo feticídio, diga-se bem, razão de se preferir a mulher. Vale a pena, no fim das contas, lembrar a todos que não se pode usar a morte de criancinhas para obtenção de votos. Não fica bem e há quem não goste.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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