Não só de pão vivem os advogados criminalistas
* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer
Não só de pão vivem os advogados criminalistas***
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O fim de semana trouxe, no “Estadão”, entrevista de um dos advogados intrometidos na defesa da apedrejante Sakineh, a mesma que aguarda há meses definição da justiça iraniana. Entre o apedrejamento e a morte por enforcamento, a mulher espera uma solução. Segundo seu advogado, que se encontra refugiado na Noruega, é possível a libertação, embora remota. O defensor se baseia no fato de não ser possível, por lá, a reclassificação de apedrejamento para outra forma de pena, esta última capital. Talvez o raciocínio se fundamente no fato de o apedrejamento, em 50% dos casos, não resultar em morte, havendo, portanto, possibilidade de salvação, o que não acontece ao outro castigo. O entrevistado conta que passou apertado enquanto defendia a iraniana famosa. As autoridades, tentando fazê-lo calar-se, haviam encarcerado a família do doutor, ato que ainda hoje não é raro porque, não se podendo intimidar o próprio advogado, vale a pena tomar reféns. Não se perca o cronista na comparação (os parentes do defensor exilado não traficam entorpecentes ou cometem crimes afins), mas é bom lembrar que as mulheres dos fugitivos do Complexo do Alemão foram encarceradas, procurando-se com isso obter a apresentação dos maridos ou amantes. Por paradoxal que pareça, os criminosos também têm descendentes, choram com dor de barriga e morrem de câncer. A vida é assim. A televisão é irritante, mas há aqueles programas que exibem os fatos da chamada animalidade inferior, surpreendendo com os carinhos feitos nos filhotes pelas tigresas, hienas e, para não se dizer que não se falou de répteis, por crocodilos-fêmeas que protegem seus filhotes indefesos dos predadores aquáticos, agasalhando-os dentro das enormes bocarras.
No episódio da ocupação dos pontos delituosos do Rio de Janeiro houve a prisão de advogados, com ou sem razão, mas tal atividade impediu que presos se comunicassem com seus defensores. O Brasil é pródigo, atualmente, em procedimentos aptos ao seccionamento de comunicação entre acusados e seus patronos, sendo dos mais conhecidos aquele consistente na interceptação ambiental de parlatórios de advogados no Estado de São Paulo, coisa muito feia, aliás, cuja descoberta ficou em água de batata. Uma bandidagem oficial, sem dúvida nenhuma, mas posta embaixo do travesseiro daqueles que a fizeram. Hão de pagar por isso.
Não há, no país, crime famoso e de implicações políticas que não atice um ou outro comportamento infracional dos investigadores. Processando-se os advogados, enfraquece-se a atividade defensiva, desequilibrando-se em consequência o contraditório. Há defensores que continuam impávidos, como aqueles animais selvagens que lambem as feridas e partem para a batalha. No fim de tudo, existem cicatrizes gloriosas e outras não. Dentro de um regulamento não escrito, há delitos honrados e alguns infamantes. Exemplos dos últimos: apropriar-se dos dinheiros de viúvas, enganar órfãos, meter no bolso dinheiro que não é seu, misturar-se, por conhecimento prévio, em condutas infracionais dos defendidos e, enfim, envolver-se apaixonadamente com contratantes do sexo feminino (v. “A Filha do Silêncio”). O resto, na refrega violentamente aprofundada, sai nas águas, porque constitui, no fim das contas, a explosão de santa ira contra a negação da justiça. Não é sem razão que a lei penal admite a imunidade nos chamados crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação) porque há oportunidade em que o lado de lá, aquilo que se costuma denominar Estado-Administração, merece a dura resposta, a repulsa máscula e o xingamento ríspido. Civilizadamente, a verbalização rude substitui o terçar do aço dos espadachins nos episódios românticos dos séculos que se foram. Aqui, entre os brasileiros, não há quem morra disso, contrariamente ao risco assumido por iranianos e, segundo dizem, por defensores chineses. A brasilidade trata a beca com mais benevolência. Às vezes sai um pouco de sangue. Talvez seja por isso que o regulamento estipule, no negror das vestes talares, um cordão vermelho vertendo dos dois lados. É bom dizer, no fim das contas, que os criminalistas brasileiros também sabem ferir. Têm bons dentes e ferreteiam com vontade a panturrilha alheia, quando é preciso, sempre dentro da lei.
* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e um anos.
** Áudio e vídeo
*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.