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O coronel da PM e a cuspida do Titanic

Paulo Sérgio Leite Fernandes

Sexta-feira, 25 de outubro de 2013, a noite paulista se enrugou outra vez, com concentração maior na região da Sé. Houve manifestação em favor do transporte público gratuito para a população, o chamado “passe livre”. Conforme a praxe, o início era pacífico, mas as coisas se complicaram após intromissão dos chamados black blocs, uma súcia de mascarados voltados sobretudo a depredações. Tenho nos meus guardados uma placa de prata com cerca de 200 gramas, comemorativa da reforma e reabertura do “Scala”, de Milão. Existem ali, nos cantos, quatro máscaras. A comédia e a tragédia estão gravadas, em alto-relevo. Nada além daqueles disfarces usados nos antigos dramas do teatro grego. Os black blocs são assim: encobrem o rosto para não serem pegos no meio do vandalismo. Há na chusma alguns desocupados, uns filhinhos-de-papai, uma porcentagem qualquer de delinquentes e, na rabeira, os chamados “altruístas”, dispostos a demonstrar, pela violência, a insatisfação do povo com a incúria das autoridades. A perspectiva, no aspecto psicanalítico, é quase rotina. Tanto faz o suicida a explodir com a bomba caseira posta na cintura como o trânsfuga adoidado a pisotear os adereços de uma agência bancária. O fenômeno instigador, multiplicado no cérebro do transgressor, tem os mesmos influxos: a raiva da própria situação demeritória na cidadania, amores não recompensados (cherchez la femme) e até mesmo insatisfações múltiplas em famílias bem dotadas economicamente (drogas?). Há, é claro, diferenças entre os nossos black blocs e os ensandecidos atuando na Palestina e países árabes em geral. Estes visitam o além junto aos trucidados; os nossos são morigerados: batem, quebram, ferem mas fogem, se puderem. Não chegam aos extremos. Coisa de brasileiro. A Polícia, de seu lado, vai na manha possível, até que roubam a arma do coronel e levam seu telefone. Militar perder a pistola é o mesmo que intelectual ser privado da caneta (tinteiro, nunca esferográfica, único pecado de Vinícius de Moraes, sabendo-se que este escrevia com “BIC” ou assemelhada. Que coisa terrível. Vale a pena o comentário em homenagem ao centenário do nascimento do maior poeta nacional).

Pelo sim pelo não, alguém levou o trabuco do graduado policial militar. Não é por outra razão que soldados costumam carregá-los amarrados num cordel preso ao cinto. O dono vai junto. O incidente exibe várias hipóteses: é possível que o PM em questão fosse um negociador (Bruce Willis negociava até a filha, mesmo tendo esta uma arma no rosto). É provável, igualmente, que o soldado graduado não tenha querido matar o ladrão. Vai-se a pistola e ficam os dedos. De qualquer maneira, safou-se com alguns ferimentos, dando graças a Deus (militar também tem seus santos protetores) por ter mantido a calma. Isso não significa, entretanto, que a Corporação esteja em paz. O símbolo posto na bandeira foi maculado. “Se tu faz pra mama, mama faz pra tu” (Chicago). Vai daí, a manifestação de sexta-feira última teve a cobrança de um preço caro: o Código de Processo Penal foi mandado às tintas. Setenta manifestantes, ou curiosos, foram levados a delegacias, impedindo-se, inclusive, a chegança de advogados. No fim de tudo, dois restaram presos, porque identificados em vídeos feitos por infiltrados (também temos Leonardo DiCaprio e Matt Damon). É preciso entender, fixando-se a premissa a título de arredondamento da crônica, que a chamada “cidadania” está fazendo o que sempre se fez episodicamente no mundo. Na verdade, aqui e ali existem explosões análogas, uma espécie de “tolerância zero” mostrando os caninos por motivos aparentemente menos importantes, mas com aproximação nos limites extremos. É este o risco: o agressor, na hipótese um black bloc, vai esticando as unhas e arranhando o mantenedor da lei. Num determinado momento, cospe do lado de lá. É rezar, agora aos deuses do populacho enlouquecido, para que a cuspida não se transforme em escarro bem diferente, aliás, daquele posto no mar na cena maior do filme “Titanic”. Alguém se afoga na brincadeira.

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