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A tortura no Brasil moderno (ou “Tempos de Violência”)

* Paulo Sérgio Leite Fernandes
**Gustavo Bayer

      ***A tortura no Brasil moderno

          (ou “Tempos de Violência”)

Paulo Sérgio Leite Fernandes

A “Comissão Nacional da Verdade” apresentou, em dez de dezembro vertente, relatório final sobre os trabalhos referentes à apuração dos tenebrosos acontecimentos atinentes ao golpe de 1964. Ouviu dezenas e dezenas de pessoas, colheu documentos, fez múltiplas diligências e juntou tudo em muitos alentados volumes, entregando tais resultados à Presidência da República e Ordem dos Advogados do Brasil. Entenda-se que no plano objetivo, a lei de Anistia colheu o todo, resultando entretanto aspectos correspondentes à localização dos restos mortais das vítimas e dos torturadores remanescentes, na medida em que é preciso saber, é necessário descobrir e é imprescindível punir, seja no plano legal ou no ético. Tocante à anistia, sobram em volta uns poucos carrascos, tatuados no coração por mofados pedaços de culpa. Ela realmente é plena. Isto é uma desgraça, mas plenitude existe. Sobram em volta, uns poucos carrascos,

É lembrar de um nazista submetido a julgamento, há não muito tempo, mas absolutamente impossibilitado de saber, sequer, o que estava fazendo ali. Em suma, pretendia-se punir um “já defunto”. São fatos tragicômicos, mas acontece.

Volte-se à comissão da verdade federal: um esforço magnífico, certamente, metendo no passado um fórceps ardente voltado a praticar, respeitada a falibilidade humana, verdadeira assepsia naquela infecção nauseabunda. O homem – e a mulher, não se diga que é esquecida – vivem numa esquisita ficção de perenidade: falam do passado como se estivesse presente e do futuro como postos lá. Esquisito? A “Comissão da Verdade” faz isso, a exemplo de toda a literatura respeitante a todos os períodos nefandos da história da humanidade. Singularmente, os heróis continuam sendo visados como se entre nós se colocassem, valendo o mesmo para os verdugos. Paradoxalmente, o heroificado de ontem é o judas do porvir, incumbindo-se o tempo de identificar um e outro. Não se perca espaço em multiplicar exemplos. A título de curta digressão, o escriba pode dizer que conheceu Erasmo Dias, major, depois coronel, mais tarde Secretário de Segurança invasor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e da PUC paulista, entre outras atividades pérfidas. Erasmo era de Santos. Prendeu gente lá embaixo, prosseguindo na tarefa aqui em São Paulo. O cronista o enxerga enquanto ele atacava a Faculdade de Direito, protegido pela polícia militar, sempre a polícia militar, segmento bifronte, anjo e demônio, às vezes pronta a acompanhar os endurecimentos políticos ocorridos no país, desastradamente, diga-se de passagem. Erasmo fez o que fez e morreu. O articulista rememora bem aquele dia morfético. Estava dentro da faculdade. Saíra correndo da Ordem dos Advogados, na Praça da Sé, ouvindo a notícia da chegança dos invasores. Conseguiu entrar para o resgate de Ana Maria, presa lá dentro com professores, alunos e serventuários. A grande porta de bronze se fechou logo depois, vidros estilhaçados pelos soldados. Foi assim. Tocante ao delegado Fleury, o cronista só o viu uma vez, de passagem, no casarão vermelho que abrigava o centro intelectual da repressão, hoje transformado em museu. A criatura estava negligentemente sentada no canto de uma mesa de trabalho. Olhou-me desinteressada, como um escorpião desatento a uma possível presa. Lá à frente, o policial também morreu, prensado entre barcos, ou afogado, num evento nunca explicado. Mas se foi, igualmente.

Participação pequena naquilo tudo o cronista teve. Conheceu as masmorras do subsolo daquele prédio pintado de sangue. Não se pergunte como chegou lá. A vida tem mistérios. Aquele vetusto edifício, antes servindo ao recolhimento de imigrantes e mais tarde à prisão de suspeitos de espionagem nazista no Brasil, entre outros encarceramentos, tinha seus segredos. Ocasionalmente, embora não se podendo falar com presos políticos no subterrâneo, havia jeito de entrar ali. Tudo tem jeito…

O escriba atuou numa auditoria de guerra, não muito, é bem verdade, mas defendeu um ou outro estudante colhido enquanto estilingava a bunda dos cavalos da polícia militar, misturando-se  faíscas projetadas pelos cascos rascando o calçadão da Faculdade de Direito. Escondeu um bispo subversivo e visitava regularmente o menino fugitivo que usava disfarce arredondado sobre sandálias de franciscano. Um dia depois do assassinato de Wladimir Herzog levou à delegacia de polícia da rua Tutóia – a mesma a ser preservada como retrato da ditadura – um rapaz dito comunista e fugido voltando da Bahia. Herzog lhe serviu de padrinho, embora morto, porque a crise explodia e os militares recuavam. Não se diga que o velho rábula teve medo, pois foi profissional, mesmo defendendo os subversivos, pisgado-se para partidos políticos e ideologias. Completava seu trabalho, não sendo incomodado pelos milicos. A bem-dizer, trabalhava melhor do que agora sob o signo da democracia. Não havia interceptações ambientais e telefônicas multifárias nem espiões obsessivamente voltados á violação dos lares. O Ministério Público estava ao lado do Poder, sim, exceção feita a alguns promotores de justiça refratários ao regime. Estes foram postos na rua. São pecados que as instituições cometem, merecendo purgação permanente. Tais percalços vêm a pelo enquanto a “Comissão da Verdade” entrega suas conclusões, fazendo par, acredite-se, à obra “Brasil Nunca Mais” e a alguns outros livros, destacando-se o conjunto de obras escritas por Elio Gaspari. Tudo começou com Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e João Figueiredo. Geisel não era o pior. O pior foi Médici, mas todos se embolaram no jogo mortífero superado há poucos anos. Em termos bem rudes, a ditadura se foi e a democracia impera no país. Dir-se-ia que a liberdade viceja, entusiasmando a brasilidade, mas o perigo mora ao lado. Há uma compulsão quase psicótica pela remoralização do país, usando-se métodos e legislação repulsivos. Destaquem-se a delação premiada, a colaboração recompensada, os centros de escuta clandestinamente implantados por aí, a prisão temporária, o segredo impeditivo de saberem os acusados qual a sede das imputações, a escuta posta em parlatórios de presídios, os interrogatórios repetindo-se durante horas e horas com equipes a se substituírem, os juízes inquisitores e investigadores, o medo da magistratura, constando ser este o pior defeito que um pretor pode ter e, pululando em torno, o renascimento de vozes buscando novamente o militarismo no Brasil. Uma contradição, certamente, posta na bilateralidade referida no início. Na verdade, enquanto se critica o período bastardo atravessado pelo Brasil a partir do golpe de 64, o próprio Habeas Corpus começa a ser aviltado pelo Poder Judiciário, surgindo restrições a conhecimento e tramitação, como se fosse, tal instituto, um instrumento propiciador de proteção a malfeitores. Diga-se, em finalização, que o instituto em conta é o principal barômetro a medir o contexto das liberdades públicas. O “writ” está sendo vigiado soturnamente. Empalidecem-se os juízes quando provocados à jurisdição, intimidados, quem sabe, por suspeitas de favorecimento, valendo a hipótese naqueles fatos sobrelevantes na luta contra a corrupção, batalha necessária, sim, mas precisando ser administrada com respeito absoluto ao direito de defesa. Nesse sentido, o pretor medroso comete pecado mortal.

* Advogado criminalista em São Paulo há cinquenta e quatro anos.

** Áudio e vídeo

*** O texto é de única e absoluta responsabilidade do autor Paulo Sérgio Leite Fernandes. O intérprete Gustavo Bayer é apenas o ator.

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